«Un arc-en-ciel bruissant d’oiseaux chanteurs m’accueillait,
ce dimanche-là de mars 1992, le jour de mon premier retour à Bunchenwald».(Jorge Semprún)
O filósofo alemão Theodor Adorno disse que não era possível fazer poesia depois de Auschwitz. Ou depois de tudo o que ocorreu na II Grande Guerra. Muitos, como ele, disseram que o horror era inimaginável, impossível de se retratar. Ao mesmo tempo, sabemo-nos mergulhados numa cultura imagética que nos empurra irremediavelmente em direção ao retratável, ao reprodutível, ao visível. No entanto, é mais fácil não ver, porque ver é aceitar a existência, é pactuar, pelo menos enquanto seres humanos, com uma barbárie inimaginável, mas realizada. E fotografada, mesmo que sejam poucas as imagens que escaparam e que se deram a ver aos olhos do mundo. Imagens apesar de tudo é o título de um livro do historiador de arte francês Georges Didi-Huberman, que narra, e mostra, quatro imagens que escaparam ao fogo de Auschwitz, tiradas pelos membros do Sonderkommando – judeus obrigados a levar à câmara de gás outros judeus.
Judeus obrigados a cremar corpos, vivos ou mortos, de seus compatriotas. Se não há testemunhos, nem memória, o facto não existiu. Era esta a intenção dos SS – um crime tão perfeito que não deixaria rasto. Um crime que implicava desenterrar os mortos para voltar a queimá-los e, desfeitos em cinza, serem espalhados pelos campos, sem túmulos nem oração. Como disse Goebbels, no discurso analisado por Hannah Arendt, “não se pronunciará o kaddish”: morreriam sem que ficassem seus restos ou uma memória. Mas a imagem escapou ao campo de concentração, à câmara de gás e chegou às mãos dos vivos, dos que ajudavam na resistência e fizeram das imagens memória, mesmo que metonímica, de todo o horror que se viveu sob o jugo de Adolf Hitler.
Imagens, apesar de tudo. O historiador não quer que elas sejam negadas, mas contempladas. Não pelo sentido mórbido, ou espectral, que nos move. Mas pelo seu caráter de documento. Talvez na altura ainda não fosse possível fazer poesia, mas era possível criar imagens que perdurassem na memória e, como memória, como um alerta ao futuro e como uma confirmação de um passado, que por mais que queiramos negar, houve.
Passados mais de 70 anos sobre o fim da guerra, as imagens ainda se dão a ver. Quer como documento, quer como arte, pois afinal, e para o nosso bem, a poesia sobreviveu ao genocídio e os pássaros voltaram à floresta de Bunchenwald. A artista Christine Henry, cujo pai sobreviveu à chacina deste campo de concentração, decidiu remexer nas memórias mais duras e trazer de volta os pássaros. Que não cantam, que não se movem, mas que ocupam espaço e que se tornam imagem daquilo a que se chamou o irrepresentável.
Os pássaros da artista ocupam todos os lugares da capela de Santo António, antigo convento da cidade de Loulé, hoje – e ainda por algum tempo – convertido em espaço expositivo. Uma capela é local de recolhimento e de convite à contemplação. Podemos entrar e contemplar a beleza sublime da obra de Christine Henry: pássaros humanizados, ou pessoas desumanizadas, construídos de pedaços de madeira, de ferro e de juta, dispostos de frente para quem entra na exposição, fixos numa espécie de cadafalso, fixos porque representam os que ficaram, não aqueles que sobreviveram e que puderam, anos depois, voltar a ouvir pássaros na floresta de Bunchenwald.
No último ensaio que publicou, escreveu Jorge Sémprun:
«Les oiseaux étaient revenus. Ce fut la première chose que je remarquai en m’avançant sur l’espace, vide et dramatique, de l’Appellplatz. Les merles moqueurs, tous les oiseaux chanteurs, dans la rumeur assourdie de leurs trilles, étaient revenus dans les arbres centenaires de la forêt de Goethe, d’où ils avaient été chassés, des décennies auparavant, par la fumée nauséabonde du crématoire».
Ele sobreviveu a Bunchenwald e só lá conseguiu voltar passados quase 50 anos. E os pássaros saudaram-no com grande burburinho. Onde antes havia silêncio – os pássaros foram embora da floresta porque não suportaram os fumos e o odor que saía diariamente daquela construção semiocultada pelos arbustos à volta.
A arte é autotélica, tem um fim em si mesma. Não necessita de se justificar, nem de ter uma função, para existir. Mas é sempre um gesto político, de resistência, de criação de memórias, de construção do passado no presente, de rememoração ou de homenagem. Os pássaros de Christine Henry, ora dispostos em filas, ora amontoados como corpos, sem asas, sem pés, sem bicos, podem ser vistos como objetos que dizem de si mesmos, pela sua singularidade, pela artisticidade contida em cada peça, e na montagem da exposição que culmina num altar tosco, de madeira. Um altar que não contém os objetos habituais dos cultos religiosos, mas barras de sabão feitas de cinza. Porque os objetos, com seu odor, a sua rugosidade, a sua presença, falam das imagens que, apesar de tudo, persistem.
E os pássaros, apesar de tudo, estão lá, de volta. Mesmo que num espaço outro, mesmo que não cantem e que nos falem da sua imobilidade, da sua incapacidade de alçar voo. Porque a arte não se cala, apesar da sua dificuldade em expressar o horror. Porque a arte de Christine Henry não acorda em cada um de nós o desejo perverso de presenciar os espectros, mas desperta a nossa memória e homenageia, assim, aqueles que se foram e de quem nada restou, além de cinzas. E um imenso silêncio.