Nada mais difícil, nada mais fácil, que emitir julgamentos. Na esfera jurídica o julgamento é respaldado em leis, em códigos que permitem, na maioria das vezes, acertos. Os julgamentos jurídicos não necessariamente globalizam a totalidade do indivíduo desde que estão sempre relacionados a aspectos comportamentais julgados positivos ou negativos a depender de suas inserções na contramão da sociedade, ou na visualização das estruturas intrínsecas aos mesmos. Atitudes anti-sociais, lesivas ao sistema ou ao outro, são de fácil apreensão e categorização, embora nem sempre fáceis de resolver.
O grande problema de julgar ou o grande problema do julgamento aparece quando ele estabelece críticas ou elogios ao outro. Constantemente o julgamento se caracteriza por ser uma expressão de conceitos, de preconceitos, de experiências, enfim, de verdades próprias construídas ao longo de vivências, ou alicerçadas na consagração de conveniências, realização social e bom senso. Nesse aspecto já podemos perceber que julgamento é a túnica, a capa que se coloca para envolver e proteger evidências.
Para julgar o outro é preciso se colocar no lugar do mesmo, ato que impediria quaisquer generalizações. Além disso, não há como ser outro e ser o outro, o diferente, sendo o semelhante que o julga. Portanto, situar por diferença é difícil, enquanto que por semelhança é o mais frequente e fácil, pois, em geral, julgamentos são exercidos por meio de critérios autorreferenciados. Essa vivência de espelho provoca refração, reflexão que no mínimo ilustra e apoia verdades, tanto quanto distorce o julgado, desde colocá-lo fora de foco, até polarizá-lo em outras configurações, consequentemente distorcidas.
Julgar implica em isenção. Nas leis isso é possível quando se segue todo o disposto sobre o assunto, suas contradições e jurisprudência. No cotidiano, não existe essa possibilidade de isenção pois participamos dos processos com motivações geralmente alheias aos mesmos, motivações configuradas em outras estruturas, outros contextos.
Camus, em O Estrangeiro, mostra a contingência e limitação dos julgamentos, mesmo na esfera jurídica ou esfera legal. Fica claro como são os aspectos, os a priori, as evidências anteriores, que tudo expressam. É fatal ter bebido um cafezinho no enterro da mãe, e assim, Meursault já demonstrava para seus julgadores, a sua frieza, a mesma que o fez matar o argelino.
Quando nos colocamos no lugar do outro - única forma de julgá-lo - percebemos o despropósito dos julgamentos, pois entendemos todas as motivações do considerado erro ou acerto. No histórico julgamento dos nazistas em Jerusalem, Eichmann defendia-se de ser condenado pela morte de milhares de judeus, alegando que cumpria ordens, ou seja, escudando-se na responsabilidade, e ainda, ornando sua fala/defesa com conceitos éticos kantianos. Enfim, ao tentar invalidar seus crimes, alegando exercício de responsabilidade profissional, isto é, o cumprimento de ordens, ele dizia: “a culpa não é minha”. Como escreveu Hannah Arendt:
“bastava Eichmann relembrar o seu passado para se sentir seguro de não estar mentindo, de não estar se enganando, pois ele, e o mundo em que viveu, marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos auto-engano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann”.
Quando abordamos a questão do julgamento são enfáticas as dimensões éticas nas quais os critérios antropológico e psicológico se constituem em fulcro. Julgar é sempre buscar vítimas, assim como buscar heróis. É sempre criar novos pontos de convergência para explicar acertos ou erros, e dessa forma, julgamento é a ferramenta privilegiada para arrolar, determinar e explicar configurações que ultrapassam o limite do amesquinhado mundo que se transita.
A confiança que existe nos indivíduos que fazem psicoterapia, por exemplo, é construída pela certeza de não serem julgados, de não serem vistos como contraventores, criminosos ou solucionadores de confusões e problemas. A busca de ser percebido, de se mostrar sem máscaras, é motivante, traz descobertas, traz o novo, quebra critérios aprisionantes de julgamentos de acertos e erros.
Na aceitação, na integração amorosa, também não há julgamento, há constatação, há descoberta. Podemos dizer que quem ama não julga, que está integrado com o vivenciado, e nesses casos o julgamento seria quase um diálogo esclerosado, pois cheio de apoios, de regras que permitem comprovação, destruição da insegurança e de como lidar com o que não se conhece.
O julgamento, em última análise, na busca de isenção, é transformado em uma ferramenta para conseguir vislumbrar o semelhante como o outro, o distante, o não configurado, o que impede ou o que possibilita absolvição ou condenação.
A priori, certeza, omissão, medo, o que divide e separa, que estabelece mesmice, repetição, segurança e garantia são os constituintes dos julgamentos, necessários para controlar, para estabelecer critérios, e assim vale quem melhor julga e também quem escapa vitorioso desses julgamentos limitadores.