Amada por uns, odiada por outros. Elena Ferrante é um fenômeno editorial em todo sentido: seus livros têm vendido como água, dividindo opiniões. Há aqueles que sofrem de uma espécie de efeito Harry Potter adulto, e não conseguem parar até terminar a tetralogia napolitana (A amiga genial, A História do Novo Sobrenome, A História de quem vai e de quem fica, A História da Menina Perdida) e depois ler todos os outros livros da autora, na tentativa de viver um pouco mais de tempo dentro do universo propiciado pela escritora.
Existem outros que a acusam de ser mainstream demais, novelesca (no sentido televisivo, não no literário), um produto puramente mercadológico, de qualidade inferior. Intrigada, resolvi colocar Ferrante à prova, e li apenas o primeiro romance da tetralogia, tomando o devido cuidado para não cair em armadilhas reducionistas (nem para um lado, nem para o outro).
Quero antes destacar que, como tradutora, achei o trabalho do Maurício Santana Dias bastante sólido e digno de menção: o texto flui muito bem em português, mas na medida certa para deixar um gostinho, um sonzinho de fundo, de que se trata de uma narrativa italiana – mais que isso, do sul da Itália, napolitana, o que faz toda a diferença. Além disso, durante a leitura pude confirmar uma tese sobre a qual tenho, basicamente, fundamentado a minha existência, que é a de: se você não é um esnobe insuportável, pode se deixar surpreender, desfrutar e tirar o melhor de praticamente tudo.
Primeira razão: Elena (ou qual quer que seja o seu nome verdadeiro) é de fato uma ótima narradora. Sua narração é habilidosa e, ainda que a fórmula seja previsível e se torne cada vez mais evidente conforme nos aprofundamos no texto, ela modula com perícia momentos de maior e menor tensão dramática e a leitura alcança um fluxo veloz, sem obstáculos. Como técnica da linguagem, Ferrante é bastante eficaz.
Segunda razão: A história é instigante, sim. Imersa num contexto cultural, que ela parece conhecer bem, longe de clichês e estereótipos culturais, sua narrativa transita por personagens bem estruturados, por vezes contraditórios, alegrias, medos, injustiças, tristezas, raiva, e desfechos inesperados. Sem contar o interessante pano de fundo histórico do pós-guerra, numa sociedade que precisa reaprender a viver junta, ressignificando-se.
Terceira razão: Protagonismo feminino sem misoginia ou condescendência. Nem a donzela em perigo, nem a super-heroína de capa e visão raio-X, nem a vilã imoral, nem o libelo da bondade e bons costumes. Elena e Rafaela são meninas, que vão virando mulheres ao longo da história, com as quais podemos nos identificar profundamente. Nós passamos por várias situações e questionamentos interiores análogos, ainda que elas vivam em outra época. Sem aquela bobagem melosa de novela das seis, ou a atitude pseudo disruptiva das revistas adolescentes. É a coisa real: conflito com gerações anteriores, falta de informação, machismo, risco/medo de abuso, episódios dissociativos com o próprio corpo, esquerdo-machos, ter de se esforçar duas vezes mais porque somos mulheres (ainda que sejamos melhores e mais qualificadas).
Quarta razão: Bem ou mal, quando um produto literário gera o tipo de frisson comparável a outros meios de entretenimento (ainda mais num país como o nosso, onde se lê vergonhosamente pouco e mal – e aqui estou falando de semi-analfabetismo mesmo, e nem entro no mérito de qualidade literária) eu penso que todo o mundo tem a ganhar, porque significa que as pessoas estão abertas, que dentro delas - em algum cantinho - a literatura ainda pulsa e vive. Se ainda por cima, é bem escrito, traduzido e traz uma perspectiva que não fere ninguém, (muito pelo contrário, reverbera em tantas mulheres como descrevi antes), quem é amante das letras e adepto das novidades e crescimento do mercado editorial tem mais é que apoiar. Pronto, falei.