«Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança».
(F. Nietzsche, Assim falou Zaratustra)
Em nossa sociedade, uma das receitas de sucesso consiste em ganhar muito dinheiro para viajar ao exterior. Muitas pessoas têm nisso seu sonho de consumo, sendo que o tamanho do ego é medido e se confunde com as fronteiras do mundo.
Particularmente entre mulheres que não dispõem dessa possibilidade e parecem conduzir sua vida, aos olhos de muitos, «na mais absoluta mediocridade», Pinkola Estés, autora de Mulheres que Correm com os Lobos, diz o seguinte:
«Nós, mulheres, quase sempre começamos num deserto. Temos uma sensação de perda de direitos, de alienação, de não estarmos vinculados nem mesmo a uma moita de cactus. Os antigos chamavam o deserto de lugar da revelação divina. Para as mulheres, porém, ele oferece muito mais do que isso». (p. 55)
O deserto é um lugar em que a vida se apresenta muito condensada. As raízes das plantas se agarram à última gota d’água, e as flores armazenam umidade abrindo apenas de manhã cedo e ao final da tarde. A vida no deserto é pequena, porém brilhante, e quase tudo que acontece tem lugar no subsolo. Essa descrição é semelhante à vida de muitas mulheres.
O deserto não é exuberante como uma floresta ou a selva. Ele é muito intenso e misterioso nas suas formas de vida. Muitas de nós vivem vidas desérticas: ínfimas na superfície e imensas por baixo.
A psique de uma mulher pode ter chegado ao deserto em virtude da ressonância, devido a crueldades passadas ou por não lhe ter sido permitida uma vida mais ampla a céu aberto.
Algumas mulheres não querem estar no deserto psíquico. Elas detestam a fragilidade, a escassez. Vale lembrar que o trabalho mais profundo é geralmente o mais sombrio. Uma mulher corajosa, uma mulher que procura ser sábia, irá urbanizar os terrenos psíquicos mais pobres, pois, se ela construir apenas nos melhores terrenos da psique, terá uma visão ínfima de quem realmente é. Assim, não deve ter medo de investigar o pior, pois isto só lhe garante um aumento no poder de sua alma.
Desta forma, mulheres que, em sua labuta diária, passam despercebidas aos olhos de outrem, estão na realidade cultivando intensamente no subterrâneo de sua psique. O glamour das luzes da cidade é substituído pelos mistérios da lua cheia e o brilho das estrelas do céu; o ronco dos motores das aeronaves, pelo rumor das tempestades de areia, a elegância citadina, pela imponência do camelo-bactriano.
Pode-se ainda equiparar o subsolo de um deserto na vida das mulheres a um grande caldeirão de bruxa. Ali, no silêncio, protegidas do rigor dos extremos de temperatura, e ainda, longe da luminosidade estonteante dos holofotes das grandes cidades, elas redescobrem sua força e ao mesmo tempo despertam seus poderes ocultos, tornando-se assim, Senhoras dos segredos da vida e da morte e da sobrevivência psíquica. Além disso, sua intimidade com os quatro elementos - fogo, terra, ar e água - resulta em uma forma mais serena e segura de olhar para a vida e os fenômenos da natureza (visto que possuem uma parcela da substância de cada um deles incorporada em si mesmas) e em maior poder e domínio sobre as adversidades.
Vale lembrar que há outros horizontes que não aqueles das fronteiras dos países distantes. Os horizontes das fronteiras da alma, onde pepitas de ouro aguardam as que se atrevem a empreender as jornadas mais fatigantes.
O trabalho é de fato árduo, pois, à medida que se lança luz sobre as trevas da psique com a maior intensidade possível, a sombra, onde a luz não alcança, fica ainda mais escura. Nesse movimento, a mulher precisa também apreender e se apropriar dos atributos que em nossa cultura são tidos como masculinos (a previsibilidade e controle no uso da lógica e da razão; o uso da força na busca de um objetivo definido; o contato claro com o real que pressupõe limites e obrigações, etc.), compondo assim uma vivência da integralidade.
Todo esse esforço pode parecer inútil aos olhos de quem só consegue ver os espaços que as luzes da cidade conseguem penetrar. A investigação profunda de si mesma em meio às adversidades pode ser uma manifestação do feminino ainda pouco explorada e valorizada. Até porque o esforço e o suar a camisa não é para muitos, mas para poucos.
Se por um lado, o «sentido da vida» é um enigma universal, por outro, são relativos os meios que cada um dispõe para se chegar a isto.
Referências:
Estes, Clarissa Pinkola: Mulheres que Correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994.