Pretendemos com este texto mostrar como a leitura, a hermenêutica e a ética são preocupações clássicas e como se manifestaram ao nível de um projecto educativo e de formação, que constitui a Républica de Platão.
Tendo sido a vida de Sócrates uma antecipação de um novo bios, podemos dizer que é com este heroi platónico que o “ético” volta a situar-se no centro do problema da missão educativa, donde havia sido deslocado pelo movimento dos sofistas. Na verdade, poderíamos dizer que o primeiro educador filósofo foi Sócrates, que através dos diálogos e memórias platónicas se manifestou de viva voz .
Aos olhos de Platão, uma antropologia filosófica já estaria implícita em Sócrates. É que a verdadeira essência da educação é dar ao Homem condições para alcançar o fim autêntico da sua vida (Républica). Platão assume a herança de Sócrates e encarrega-se da direcção da pugna crítica com as grandes potências educativas do seu tempo. Sócrates apontara a meta e estabelecera a norma para o conhecimento do Bem. Platão procura encontrar o caminho que conduz a essa meta, ao pôr o problema da essência do saber . É, em suma, uma paideia que aspira a resolver o problema da educação do Homem .
Note-se, que em A doutrina da verdade em Platão, Heidegger aborda a famosa alegoria da caverna. Em todos os seus aspectos a alegoria sugere que a verdade é desocultação, pois saímos da caverna para a luz e regressamos á caverna. A verdade transformou-se em visão correcta e o pensamento transformou-se numa questão de colocação de ideias face à visão da mente. A verdade torna-se algo que se vê, e o nosso pensamento na percepção de uma ideia. E se porventura atentarmos em Gadamer, percebemos que a abordagem do filósofo está mais próxima da dialéctica socrática do que do pensamento moderno. A verdade alcança-se dialécticamente. É uma dialéctica entre o contexto em que cada pessoa se insere e o contexto da “tradição”- o que desce até nós, o que vem ao nosso encontro. O objectivo da dialéctica é fazer com que o ser, ou a coisa que encontramos, se revele. A experiência de uma obra de arte é englobante e surge na unidade e continuidade do nosso próprio auto-conhecimento. A verdadeira tarefa hermenêutica é, pois, a integração.
A verdadeira experiência é a experência da nossa historicidade
A linguagem é o meio em que a tradição se esconde e é transmitida; a própria experiência ocorre na e pela linguagem, então, a interpretação de um texto não é pois uma abertura passiva, mas sim, uma interpretação dialéctica com o texto, não é uma simples confirmação mas sim, criação, um novo evento na compreensão. Assim, o método hermenêutico passa por colocar uma lista de questões ao texto em causa, estruturando o encontro que vamos ter com a obra ( à luz de Platão) para chegarmos ao nosso objectivo que é o da compreensão- meio de revelação.
Deste modo, no diálogo com o texto, a interrogação e o ser-se interrogado devem andar a par. Há que ser capaz de ouvir o que o texto não disse, o que quer dizer que interpretar uma obra se identifica com um caminhar para o horizonte interrogativo no qual o texto se move. Porém, isto também significa que o intérprete se move em direcção a um horizonte em que outras respostas são possíveis, sendo que a experiência conduzida pelo texto permite construir uma ponte sobre a distãncia histórica. O resultado deste processo será a descoberta da temporalidade; já que compreender a literatura ou qualquer obra de arte situa-se na ordem da temporalidade, aliás como Ricoeur faz questão de sublinhar , nos volumes de Temps et récit.
Mas, regressando a Platão, o filósofo sempre insistira na acção, no bios, pois a pedagogia do educador filósofo deve assentar numa verdadeira techne, baseada no conhecimento da natureza, do homem e do que para ele constitui o maior bem; para Ricoeur “ não há mimesis senão lá, onde há um fazer” (Ricoeur), note-se que para Platão o “fazer bem” assenta em “ agir bem” (Górgias 507 C), apesar de o campo de acção tender a restringir-se cada vez mais do estado exterior para o estado dentro de nós: “ a política do filósofo é uma ética alargada à cidade, sob a consideração de um bem que não seria apenas o do indivíduo, mas o do todo. O discurso prático é, neste sentido, o discurso ético-prático” (Ricoeur). Para Platão, todo o ser é bom quando nele vinga e se realiza o tipo de ordem correspondente à sua essência, o seu próprio cosmos (Górgias 506 E).
Segundo Jaeger , Platão terá chegado à convicção de que até as leis e as constituições não passam de meras formas, que só têm valor quando no povo existe uma substância moral que as alimenta e conserva; é que para o filósofo, a justiça dentro do Estado assenta no princípio do exemplo, isto é, cada membro do organismo social deve cumprir com a maior perfeição possível a sua funçõa própria (Républica, 433 A). É assim que Platão, pela primeira vez na História da Educação, aconselha a composição de livros de leitura em que se inclua uma selecção do melhor (Leis, 811 A). Assim, o educador filósofo deveria fazer operações de selecção e interrogar-se sobre a pátria ontológica:
-Quem sou eu?
-Quem habita o meu corpo?
-Que ando a fazer?
Porque, quem for um simples imitador de imitações, será sempre uma sombra ( relembremos o mito da caverna) . Toda a imitação deve ser uma transformação da alma (Républica, 396 D), algo que nos conduz ao poder da refiguração -mimesis III- ricoeuriana.
Relembremos que Platão elaborou uma teoria da educação (Républica) e, essa teoria que ele relaciona com a sua teoria do mundo, permite-lhe conceber, no Timeu, uma vida de sageza que não consiste mais na separação do corpo e no isolamento do mundo mas em educar paralelemente o corpo e a alma , em conformidade com as leis do mundo (Timeu, 44-8 c1, 87c-90 d), o que implica uma mudança de perspectiva que integra a importância da contextualização e da temporalidade histórica.
Aludindo aos mitos que se contam às crianças, Platão defende que aqueles que contam histórias e lendas devem ser vigiados pois deixam na alma da criança um traço mais duradouro que as mãos que lhe cuidam do corpo. O filósofo exige mesmo que em todas as histórias se manifeste o mesmo “tipo” de homem (Républica 377C), que é, no fundo, o heroi ético, o que manifesta nobreza de alma nas suas acções, daí a sua ligação afectivo-pedagógica às crias ( espécie de máximas ou provérbios), que ilustram perfeitamente um conceito de saber moralizante.
Repare-se que é referido por Júnior (1993), que na cultura helenística segundo Téon, o simples exercício de leitura de uma cria tem por efeito nutrir o espírito de bons exemplos e estimular no leitor a imitação dos mais excelentes. As crias, na Antiguidade clássica, além de exercícios, eram veículos, por excelência, de valores de honestidade, responsabilidade e obrigação moral; valores culturais e éticos, uma espécie de saber ser, de filosofia de vida. Ilustradoras de normas gerais, a cria serviria o ideal platónico de educação, já que a intenção pedagógica da cria corresponderia a uma “ energia ética do exemplo” e “força persuasiva”. Ainda hoje, os provérbios ou máximas, quando aplicados a uma situação determinada, ajudam o ouvinte a interpretar o que lhe está a acontecer, a compreender a sua atitude naquele contexto, chamando a atenção para a sua consciência moral.
Relativamente ainda à importância da linguagem, do discurso, atente-se na contribuição do primeiro educados filósofo : Sócrates. Note-se nos Diálogos como Platão, através do encanto dramático se torna mestre na arte pedagógica, ao despertar no leitor uma participação activa. Somos conduzidos continuamente a um estado de ignorância que tem por objectivo pôr nas nossas mãos um enigma, deixando o leitor resolvê-lo, já que a situação se encontra de um modo ou de outro, ao seu alcance. Diremos que por via hermenêutica, dialógica.
Platão sublinha no Protágoras que a pedagogia de Sócrates se baseia fundamentalmente no facto de reduzir o problema moral a um problema de saber, isto é, de saber o que fazer com o “saber”. Comparando, Ricoeur diz-nos isto mesmo, ao longo da sua extensa obra, não só ao fazer coincidir o caminho da ética com o processo hermenêutico de autoconhecimento, mas também ao valorizar a palavra dialógica, de raiz socrática; ao sublinhar o valor educativo da palavra simbólica e sobretudo ao enfatizar o processo interpretativo e a tarefa hermenêutica como necessários para atingir uma sabedoria prática e por conseguinte uma consciência educada, que habite no sujeito ético.