Sempre fui atenta a datas comemorativas. Muitos o fazem por conta do descanso ou gandaia que um feriado - melhor ainda se prolongado! – proporciona às incansáveis metrópoles. Não só por isso, mas, por conta da escola e seus famosos trabalhos enciclopédicos - já em outros moldes nos dias de hoje - de alguma maneira preservei em minha memória várias dessas datas e seus dados, que eu copiava das tão almejadas enciclopédias Conhecer, Mirador e Barsa, consultadas na biblioteca da escola ou da Biblioteca Monteiro Lobato. Era o copy and paste da época, ou seja, líamos e extraíamos o que achávamos melhor e copiávamos em alvas folhas de papel almaço. E que grande inovação quando chegou a máquina copiadora na biblioteca! Mas toda essa nostalgia fica para uma próxima. Na verdade, volto nas minhas memórias escolares sobre datas comemorativas por conta do dia 19 de abril, dia do índio.
Em um cenário positivista, a data foi oficializada pelo presidente Getúlio Vargas em um decreto de 1943, porém, já havia sido proposta em 1940 pelos indígenas do continente americano no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano e foi escolhida por ter sido a data em que os delegados indígenas se reuniram pela primeira vez em assembleia no referido congresso. Mas vale recuarmos um pouco no tempo para entendermos não só o contexto que surge a proposição de tal data comemorativa, mas também a formação do imaginarium de como vemos o índio.
Até final do século XIX, muitas águas rolaram em relação ao que se pensava sobre o índio e houve uma gama de interpretações e estigmas ainda latentes em nossas mentes advindos daquele momento inicial de interesse cultural e intelectual dos europeus. Em linhas gerais, mesmo com o passar do tempo e diferentes linhas de pensamento, a aplicação do binômio catequese e civilização ainda era presente e a política indigenista tinha tal par conceitual como base. Entretanto, somente em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos índios (SPI), que deu lugar a atual Fundação Nacional do Índio (Funai), e, representada por Marechal Rondon, sendo guiada pelo positivismo, foi grande responsável por romper com o binômio catequese e civilização e adotar uma filosofia de trabalho indigenista focada na sociologia moderna, ou seja, centrada no homem. Foi nesse bojo que o dia do índio nasceu e também o lento processo de compreensão do que é o índio em nossa cultura, processo ainda em andamento e transformação.
Sou da década de 80 e falo pelos que vieram um pouco antes de mim e pelo menos pelos que vieram mais uma década depois. Confesso que não sei como isso é hoje em dia. Todas as escolas comemoravam o dia do índio de alguma maneira de acordo com o segmento. Parte da criação da identidade nacional, sempre havia uma referência ao índio. Quem não se lembra de não ter vestido uma espécie de cocar com uma pena e ter duas faixas paralelas pintadas no rosto quando ainda no jardim de infância? E o gesto de bater na boca pronunciando um longo “u” provavelmente acompanhando o que seria a dança da chuva? Na fase de alfabetização, lembro-me dos curtos textos falando muito brevemente sobre os índios. E o corte de cabelo chamado “cabelo de índio”? Sem falar nos desenhos americanos que propagavam estereótipos de seus povos indígenas e que certamente influenciam lá no fundo a nossa visão do que é o índio. Sempre nos disseram que viviam em ocas, comiam mandioca e andavam nus. Ou seja, meu contato quando criança estudante por toda a vida escolar na escola pública com a temática indigenista foi por meio de um grande círculo de informações fragmentadas vindas de fontes diversas jogadas sem nenhum critério e sem nenhuma criticidade. Mesmo na universidade: foram longos anos sem nenhuma abordagem, apesar do contato com a literatura de Gonçalves Dias e José de Alencar. Mas mesmo assim que distância da realidade estavam aqueles índios, não? Não afirmo que deveriam estar, afinal a literatura não se propõe a refletir a realidade, mas quando em situação de formação escolar, intelectual e de identidade apenas se é exposto ao que referi acima, como esperar que uma sociedade possa compreender, conviver e compartilhar com os povos indígenas?
Na minha bagagem rumo a Palmas para os Primeiros Jogos Mundiais Indígenas, eram essas as referências e, claro, algumas outras mais aprofundadas da vida adulta que eu levava. Como preparação, já que nunca tinha tido contato com nenhum indígena, efetuei algumas pesquisas, mas nada muito amplo, afinal, eu passaria por um treinamento onde eu seria exposta ao que precisava saber. Ledo engano... quer dizer, em partes.
Na palestra dedicada às etnias nacionais - atente-se nada foi dito sobre as etnias internacionais, apenas seus países de origem – pudemos ter uma ideia fenotípica simplista e regional dos povo e aprendi que os indígenas não gostam dos termos etnia e nem índio, para meu espanto. Na verdade, o aprendizado se deu mesmo no calor da coisa e meio aos trancos e barrancos. Acredito que muitos ali, bem como eu, não tinham real noção da diversidade que iríamos viver até aquele momento da abertura, quando realmente povo por povo desfilou diante dos nossos olhos e vimos que os filhos deste solo não são nada iguais. E foi aí que muito do que eu achava que sabia nada mais era do que estereótipo que ia se implodindo e desaparecendo da minha memória. Ainda bem!
Enquanto poucos, talvez pelo contato mais próximo no decorrer das atividades ou talvez por contato prévio com tal contexto, realmente viam as diferenças brutais entre os diversos povos, sejam eles nacionais ou estrangeiros, a grande multidão se deixou levar pelo fator espetáculo dos jogos, resquício dos tempos da “descoberta do Brasil”, no qual o exótico é pelo exótico e não interessa muito entender a diferença. O corpo e o que ele trazia como adereço passaram a serem protagonistas do espetáculo do exótico, o que ao mesmo tempo rompia e reforçava estereótipos.
No meu ponto de vista, foram dois os momentos que mais me causaram reflexão sobre o olhar para o corpo do outro. O primeiro foi o assédio geral. Ora comedido, apenas com alguns pedidos de fotos/selfies e ora realmente acalorado com palavras de baixo calão, incompreendidas pelos indígenas internacionais e abraços e poses. O segundo foi o desfile Cunhã Porã – Beleza Internacional Indígena, desfile de mulheres representando todos os povos presentes.
Assédio até certa medida é aceitável, se saudável, afinal era a primeira vez que tantos povos estavam reunidos. Porém o assédio e a repercussão de algumas fotos de indígenas nas redes sociais foram tão grandes que chegou-se ao ponto da televisão local propor uma enquete na internet da Musa e Muso dos jogos. Durante as competições masculinas, muito frisson causou parte da delegação filipina, por conta do porte dos atletas e das suas roupas típicas que deixaram praticamente todo o corpo à mostra. O problema é que não se respeitava nem o momento da competição! Outra figura muito requisitada por sua indumentária foi a indígena russa, mas com ela o assédio era mais ameno.
Já o desfile das mulheres creio que estava no limiar entre a quebra e o reforço do estereótipo, pois ao mesmo tempo que a mostra de tantas mulheres diferentes quebrava aquela imagem de que todos são iguais, fazer isso em um molde tão alheio ao mundo indígena é reforçar o caráter de espetáculo do momento. Se ao menos alguns elementos de cultura fossem ditos sobre as vestimentas, poderia até ter sido mais efetivo na quebra intencional, creio eu, dos estereótipos. Apesar disso, em um balanço geral, os jogos mais proporcionaram um espaço de implosão de ideias preconcebidas do que reforço das mesmas, desde que indivíduo tivesse uma sensibilidade que fosse além do espetacular para os olhos.
Nesse sentido, vale colocar alguns pontos de implosão de estereótipos. Nenhum indígena estava completamente nu. Nenhum indígena bate na boca enquanto dança em volta de uma fogueira. Nem toda indígena anda com seios descobertos. Sim, eles usam Facebook e Whatsapp. Sim, eles vão para a faculdade e usam jeans de marca e bermudas Nike mesmo se estão pintados, paramentados e com arcos em punho. Sim, eles usam aparelho nos dentes e empunham os escudos de seus times de futebol trabalhados em miçangas como colares, braceletes e saiotes femininos (e olha que vi vários do meu time!). Eles usam smartphones e câmeras fotográficas potentes.
Pensando nos povos nacionais, temos a imagem muito arcaica ainda de que índio “de verdade” ou “índio que é índio” não se entrega a esse mundo dos brancos. Nada disso, minha gente, vamos acordar! Outra máxima errônea é a de que os povos indígenas estão diminuindo cada vez mais. Nada disso! É uma população em crescimento, segundo o Censo IBGE 2010, são 896.917 pessoas divididas em 246 povos com mais de 150 línguas! Está na hora, então, de implodirmos de vez as bases desses estereótipos e ajustarmos as nossas lentes para podermos de fato transpor a barreira do espetacular diante do indígena e mostrarmos, principalmente para as crianças e adolescentes, que a identidade do Brasil não pode deixar seus povos originários presos no limbo de fantasias arcaizantes importas e sedimentadas ao longo do tempo.