É tendência do ser humano querer conservar junto a si o objeto amado, seja esse objeto outra pessoa, um animal de estimação, outro objeto qualquer que se investiu de catexia libidinal. Os pais, por exemplo, no afã de seu amor e na tentativa de retardar o máximo possível o momento fatídico da separação, quando os filhos então se vão do ninho, superprotegem seus rebentos e com isso impedem seu crescimento e/ou retardam seu desenvolvimento psicológico. Entre casais, frequentemente uma das partes crê que deve acompanhar o outro onde quer que a sua profissão e seus compromissos de trabalho exijam que ele vá, deixando com isso de ter vida própria e vivendo às expensas e na dependência do outro. Quanto ao nosso animal de estimação, “esquecemos” de pensar no que é bom para ele, mantendo-o próximo a nós na tentativa egoísta de preencher nosso próprio vazio existencial ou substituir outro objeto de afeto que tenha sido perdido ou não esteja acessível no momento.
Entretanto, na medida em que nos entregamos a este “abraço” asfixiante, alguma coisa morre dentro de nós e do outro, pois estamos sufocando a manifestação da vida em sua plenitude. Já dizia Khalil Gibran:
"Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vêm através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem.”
No ato de desenlaçar-se1 do objeto amado e deixar que ele se vá e siga seu próprio caminho, alguma coisa parece morrer dentro de nós, pois a sensação de vazio e de ausência para a qual não se tem remédio é avassaladora (Freud já dizia que neste caso há o retorno da libido ao ego, o que pressupõe a elaboração do luto até que haja a eleição de um novo objeto amoroso). Entretanto, em meio a estas sensações de morte, algo novo parece renascer quando percebemos que conseguimos recriar a vida e dar ao outro e a nós mesmos a oportunidade de escrever outro final para nossas histórias. Um final mais pleno e com mais saúde, esperança e encanto para nossas almas.
Uma sensação de liberdade, um respirar mais livre e profundo, o entoar de um canto para festejar a vida... Novas experiências que advêm quando temos a coragem de realizar o desenlace e permitir que as coisas se movimentem.
Recurvados sobre nossos medos, buscamos reviver a experiência da segurança na fusão com nossas mães ainda no útero e esquecemos que todo ser vivo ao nascer contém em si o gérmen da realização plena. A rosa em botão já traz em si todo o potencial da magnificência do seu desabrochar. Nascemos para ser grandes e não devemos viver relações simbióticas ou viver à sombra do outro simplesmente porque temos medo de escrever nossa própria história.
Somos seres individuais e somos seres coletivos, isto é, precisamos do outro para compor nossos projetos de vida, mas ao mesmo tempo devemos saber o momento em que o desenlace é necessário para que se possa alçar voos mais altos. Importante lembrar que este desenlace não representa necessariamente o fim de tudo, mas a transformação de uma relação ou o separar-se agora para encontrar-se mais revigorados depois.
Especificamente sobre o desapegar-se, a experiência de deixar-se ir o objeto que amamos para que outros possam cuidar ou para que ele possa viver à sua própria maneira, ao mesmo tempo em que nos faz sentir uma fina dor no mais recôndito de nossas almas nos torna melhores do que somos, pois desistimos de impedir que o rio siga seu curso e deixamos que a vida realize-se por si mesma. Além disso, depositamos nossa confiança na existência, e também atribuímos ao outro nosso voto de confiança quando o consideramos capaz de escolher seu próprio caminho.
Vale a pena citar aqui a experiência do projeto de Criação de Pássaros realizado no presídio Pollsmoor, na cidade do Cabo, na África do Sul, no ano de 2000. Assim, homicidas, estupradores e bandidos que participaram do projeto se dedicavam à tarefa de - com suas mãos rudes manchadas de sangue - embalar e acariciar pássaros minúsculos, utilizando pequenas pinças para alimentá-los com uma pasta. O idealizador do projeto, Wikus Gresse, esperava que “um amor à natureza pudesse reumanizar os criminosos.” Em suas palavras: “Ao entregar seres vivos sob seus cuidados, esperamos que eles tornem-se seres humanos mais amorosos.” Os prisioneiros que se ofereciam para o projeto enfrentavam meses de treinamento, antes que se lhes fossem destinados seus primeiros “bebês.” Ao chegar à prisão com apenas duas semanas de vida, as avezinhas eram colocadas em uma incubadora na cela do prisioneiro que iria criá-las. Nas duas semanas seguintes, o prisioneiro agia como mãe de seus protegidos, alimentando-os a cada duas horas, dia e noite. Quando as aves já conseguiam se alimentar por si mesmas, outros prisioneiros participavam da trabalhosa tarefa de domesticar os pássaros. A parte mais difícil para os presidiários, no entanto, era abrir mão de seus protegidos quando se tornavam adultos. “A primeira vez que me separei dos meus quatro bebês, chorei por dentro. Na minha cela, não me envergonho de contar, chorei de verdade,” confessou um deles2.
Assim, abrir mão do objeto que aprendemos a amar e que nos ajudou a domar nossa natureza selvagem e a aparar arestas de nosso egoísmo, para que ele (o objeto) possa seguir seu destino, é uma importante prova para nosso crescimento pessoal.
Desapegar-se exige certo grau de renúncia. Exige também dar a vez ao outro para que ele possa trilhar por caminhos diferentes daqueles que o faria se estivesse conosco. Desapegar-se exige grandeza d’alma e coragem para enfrentar a solidão. Desapegar-se exige força para o momento da despedida e um talvez “nunca mais.” Desapegar-se nos impõe a necessidade de permitir que o passado se vá para que algo novo possa vir em seu lugar. Enfim, desapegar-se exige respeitar as leis da natureza e funcionar em harmonia com a movimentação das coisas. Não podemos amarrar os ponteiros do relógio. Um aprendizado necessário.
Referências bibliográficas
1 GIBRAN, G. K. O profeta. http://pensador.uol.com.br/frase/NzQxNDU/. 14/09/15.
2 PEARSON, B. "Pássaros na gaiola". Reader’s Digest Seleções. Ano 58, p. 106-110. Julho 2000.