“Nunca desperte o amor de uma mulher se não tem a intenção de corresponder a ele”. (Palavras de uma mulher apaixonada).
Está-se falando de vínculo. Está-se falando de afeto.
A presença do vínculo em uma relação interpessoal sugere uma suposta camaradagem, aquela troca de olhares e de palavras, aquela correspondência recíproca e uma suposta intimidade que torna os atores da ação de alguma maneira ‘cúmplices’ e que os transpõe da condição de “ilustres desconhecidos” para a condição de amigos, amantes, enamorados, parceiros em prol de um objetivo comum.
Por outro lado, no discurso do senso comum é habitual referir-se ao coração (importante órgão do corpo humano) como a ‘morada’ do afeto e de nossos mais profundos sentimentos.
Na presença do vínculo, o outro se faz ‘figura’ no fundo opaco da multidão e assume cores novas e brilhantes, quando até ontem ele era apenas mais um na massa de ‘outros indiferentes’. Situando o foco nas relações amorosas, pode-se pensar então no vínculo amoroso como poderosos ‘laços’ invisíveis, que unem e/ou prendem os ‘corações’ dos enamorados. Em linguagem freudiana dir-se-ia que o objeto foi catexizado, ou seja, investido de energia libidinal.
Nosso problema na verdade surge quando a mulher apaixonada, cujas palavras estão citadas acima, chega enfurecida ao atendimento psicológico no SOS Ação Mulher e Família porque Justiniano[1], um homem envolvente que lhe seduziu e a cujos encantos não foi capaz de resistir, lhe deixou “a ver navios” em um momento em que ansiava desesperadamente por ele. Joana (vamos chamá-la assim) não sabe o que fazer com o seu ódio, pois está consciente de que continua sentindo amor por aquele homem e que a um primeiro chamado seu irá sair correndo deixando suas obrigações por fazer, pondo em risco seu emprego. Joana se vê tomada por um redemoinho de sentimentos confusos e contraditórios, capaz de levá-la à mais completa loucura.
Trazendo novos dados a fim de elucidar a complexidade da trama de nossa personagem, verificamos que a mesma é separada judicialmente, mas vive sob o mesmo teto com o ex-marido e que à exceção das “obrigações conjugais”, desempenha as demais funções de esposa porque não consegue sair da proteção daquele. O ex-marido - Agostinho - a ama e a quer de volta, mas Joana reluta em aceitá-lo, temerosa de que os antigos maus-tratos e a violência cotidiana venham a acontecer novamente. Todavia, quando se entrega ao fogo da paixão por Justiniano, Joana sente culpa por Agostinho, afinal este assumiu seu filho como se fosse dele.
Confusa e desesperada, Joana pede ajuda para sair do emaranhado em que se deixou enredar.
Importante lembrar que quando se fala de afeto e dos ‘laços do coração’ permeia outra lógica diferente daquela a que estamos familiarizados, a lógica racional consciente. Está-se falando da ‘lógica das emoções’. Para entender seu funcionamento é preciso se despir dos ‘pré-conceitos’ que a razão nos impõe e ser capaz de penetrar no universo anímico do outro. As necessidades de aceitação (ser ‘visto’ e reconhecido naquilo que somos) e de ‘amar e ser amado’ (troca de afeto recíproco) são inerentes a todo ser humano e vamos entender muitas das aparentes contradições de nossa personagem se olharmos deste ponto de vista. Assim, Joana busca ser amada. Para ela o risco de confiar novamente em Agostinho é por demais ameaçador, visto que ele não correspondeu a suas expectativas no passado. Justiniano representa uma promessa por demais tentadora, mas não lhe oferece segurança. Joana então se pergunta em seu íntimo: “Onde e com quem buscar o verdadeiro amor?” Nossa personagem tem medo de escolher e perder o que nunca conseguiu apreender e manter para si.
Através de sua trama, Joana reedita a saga do ser humano em busca do amor incondicional. Estamos todo o tempo tentando preservar os ‘laços do coração’ existentes com os outros, mesmo que com isso possamos cair em algumas ciladas.
Por isso, as palavras de Joana nos soam tão fortes. Despertar o amor de uma mulher sem ter a intenção de lhe corresponder torna-se quase um sacrilégio. É como brincar com o ‘coração’ do outro e com isso romper com a máxima de Saint-Exupéry: “Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas.”
Conseqüências funestas sucedem quando acontece o que não pode acontecer e a ameaça de rompimento com pactos de lealdade e fidelidade então se torna realidade: - o risco de um mergulho em profunda melancolia; - uma entrega ao mais absoluto desamparo e à ação silenciosa de Thanatos (instinto de morte); - o instaurar de um processo depressivo com negação do aspecto adaptativo da existência; - manifestações de agressividade heterodirigida com ataque frontal e direto ao outro... São tantas possibilidades!!!
Assim, nas entrelinhas de sua fala, Joana realiza uma conexão inconsciente, que talvez nunca ninguém tenha feito antes entre as palavras vínculo / responsabilidade / cuidado. Ela afirma com veemência que um vínculo precisa ser cuidado e alimentado. Sugere quase que uma ‘obrigação/compromisso moral’ com a pessoa da qual se aproximou e com a qual se foi buscar afeto.
Ao sair, Joana ainda levou consigo a dualidade dentro de si, pois, precisava que a realidade lhe apresentasse novas provas a fim de amadurecer seus sentimentos. Por ora, contribuiu para nosso aprendizado e conhecimento sobre os enigmas da alma humana.
Notas
[1] Todos os nomes citados neste artigo são fictícios