Introdução
Diante das descobertas da ciência que derrubam antigas crenças, da desagregação de conceitos, de uma sensação de desrealização que acompanha o surgimento das vanguardas, resiste o desejo de que a arte atue no mundo, se não para preencher o vazio deixado pela derrocada da idéia de unidade, pelo menos para retratá lo. E é isso que a chamada Geração de 27 irá fazer ao longo de um conjunto de obras. Tais obras foram consideradas surrealistas e apesar das diferenças que apresentam entre si, possuem semelhanças profundas que nos permite agrupá-las em torno de alguns pontos em comum. Há uma constante na poesia, escrita ou visual, de autores como Lorca, Aleixandre, Cernuda, Alberti e Luis Buñuel: a consciência do vazio e a desumanização do homem.
Ao longo do texto iremos apontar uma obsessão que é constante na obra de quatro poetas da geração de 27 – Cernuda, Aleixandre, Lorca e Alberti – e do realizador Luís Buñuel: o retrato do homem depois de ser expulso do Paraíso. Veremos que, se existe a nostalgia por um Paraíso ou se se visiona profeticamente este lugar, é porque algo mudou nas relações que o homem estabeleceu com o cosmos e consigo mesmo. Para os autores da primeira vaga do surrealismo espanhol, a sociedade alcançara o limite mesmo da amputação do humano. Mas isso não significa, necessariamente, que as teorias orteguianas da desumanização da arte possam ser aplicadas aqui; pelo contrário. Neste caso pode-se dizer que a humanização da arte é inversamente proporcional a degradação do homem.
De uma relação íntima com a natureza (o Paraíso) o homem passa a incompatibilizar com ela, alterando as leis fundamentais que regeram o princípio criador. Há o enfrentamento com a natureza. Como resultado desta subversão ao natural, através dos séculos vem sendo processada uma lenta degradação não somente a do ser pensante como também a da própria natureza. A natureza já não é o refúgio, como o foi perante uma visão neorromântica e neobarroca que subsistia ainda neste período. Escreveu Breton certa vez que “l’homme originellement en possession de certaines clés qui le gardaient en communion étroite avec la nature, les a perdues et, depuis lors, de plus en plus febrilement s’obstine a en essayer d’autres qui ne vont pas”[1].
Se o homem perdeu a chave que o ligava a natureza, Buñuel e seus companheiros de geração irão retratar este facto em sua obra e através dela tentar de novo reencontrar a porta que os levará ao Paraíso, ou ao momento exacto em que homem e natureza eram vasos comunicantes e em que ambos comungavam os mesmos ideais.
Da desumanização da arte à re-humanização do homem: o surrealismo espanhol
O clima vanguardista que se vivia em toda Europa também estava presente em Espanha. Entre os anos 20 e 30, apareceram os primeiros livros de uma nova geração poética. Garcia Lorca, em 1922, lança Libro de poemas, seguido por Gerardo Diego com Imagem, em 1923; Tiempo, de Emilio Prado, sai em 1925; também em 1925, Marinero en tierra, de Alberti; Las islas invitadas, de Manuel Altolaguirre em 1926 e em 1928 Ambito de Vicente Aleixandre e Cántico de Jorge Guillén. Estes autores deram corpo a chamada Geração de 27, também conhecidos como surrealistas espanhóis.
O conceito de Ortega y Gasset sobre desumanização da arte não irá resistir ao surrealismo espanhol. Nunca no século XX a poesia espanhola adquiriu um tão elevado grau de “humanização” - humanização no sentido mais pleno e cabal, já que não se limitou a perceber, recordar ou descrever, senão que pretendeu trabalhar melhor “dans le mystere de la matière et qui veut plus suggerer que décrire”[2]. Sugestões cósmicas e não morais através de uma fusão do homem com a natureza, objetivo único de um longo caminho apenas recordado na memória ancestral e coletiva ou individual, por isso mesmo, inesquecível, por mais que as sombras opostas à verdadeira ideia construam falsos paraísos.
Os poetas que irei analisar, Lorca, Cernuda, Alberti e Aleixandre, pela relação que se nos apresenta com a obra de Buñuel, longe de esquecerem o homem, ou a figura humana, reiteradamente invocam-no e reclamam-no. Permanece em suas obras o pensamento mítico, inseparável também do de toda a imaginação humana, em uma palavra: Paraíso, Paraíso Perdido e retorno até ele. Não significa porém que haja uma identidade ou uniformidade em suas obras. As experiências pessoais, bem como sua própria sensibilidade, traçaram distintos caminhos. Fica, porém, a mesma angústia (pelo homem) e a mesma fé (no homem).
Pode-se afirmar que o que mudou na estética dos finais dos anos 20 – e que se prolongará em alguns artistas da Geração de 27 até mais tarde – foi a consciência. Consciência do que é ser homem; consciência da relação do homem com a natureza e, principalmente, consciência de sua inconsciência. Esta lucidez joga nesta sinfonia estética como contraponto da já assinalada visão mítica. São ambos inseparáveis e complementares. Voltando até as suas origens o homem torna-se dono do seu passado num afã de construir, a partir de seu processo de construção, ou seja, voltar atrás em busca de um tempo perdido e remoto do qual descolou-se há muito tempo.
O Paraíso Perdido
Rafael Alberti invoca o Paraíso Perdido em um poema de Sobre los ángeles (1929), obra que causa algumas controvérsias quanto a sua classificação como surrealista, mas onde é possível encontrar elementos claramente ligados as idéias de Breton:
A través de los siglos,
por la nada del mundo,
yo, sin sueño, buscándote. (…)
żAdónde el Paraíso,
sombra, tú que has estado?
Pregunta con silencio.
Ciudades sin respuesta,
ríos sin habla, cumbres
sin ecos, mares mudos. (…)
Ya en el fin de la Tierra,
sobre el último filo,
resbalando los ojos,
muerta en mí la esperanza,
ese pórtico verde
busco en las negras simas.(…)
!Paraíso perdido!
Perdido por buscarte,
yo, sin luz para siempre.[3]
Apesar de não encontrarmos neste poema de Alberti a supressão da pontuação típica dos poemas surrealistas, detectamos, além do tema em si, o Paraíso Perdido, inumeráveis traços do imaginário surrealista. A saber, logo no primeiro verso, A través de los siglos, deparamo-nos com a indefinição e ao mesmo tempo uma ideia de continuidade temporal que é a marca do tempo surrealista. Além desta marca que atravessa todo o poema, há ainda imagens de degradação, incomunicabilidade, imobilidade, aves cegas, e as sombras que pairam sobre tudo, porque o poeta, impotente, já não alcança o paraíso.
O “Paraíso Perdido” de Alberti remete-nos, por exemplo, ao universo plástico de Max Ernst, em 2 Enfants sont menacés par un rossignol, considerada uma obra capital do artista alemão, datada do mesmo ano do primeiro manifesto do surrealismo. A utilização de uma técnica mista, em que o contraste dos elementos materiais são evidentes, é fundamental para compreender a própria obra: o quadro projeta-se para fora do espaço plástico, fazendo uma ponte entre o interior e exterior do quadro e do pintor, que esboça elementos presentes na mitologia surrealista, como as figuras sem olhos, indo em direções opostas, mas sem de fato sairem do lugar, causando a suspensão do movimento, é um não-movimento ou a impossibilidade da fuga. A ameaça é um pássaro, presença constante no bestiário surrealista. Um pássaro minúsculo que só poderia tornar-se ameaçador no espaço onírico-plástico evocado por Ernst.
Em Ernst, não só na obra citada mas em praticamente todo seu trabalho, as muralhas erguidas, as figuras sem olhos, o espaço vazio povoado por uma sombra suspensa que paira ameaçadora, sem sabermos de onde ela vem, remetem-nos a um objetivo: salvar a infância (o Paraíso Perdido) da ameaça maior da incerteza e do caos que vigiam, muito de perto, o mundo. A ideia de incomunicabilidade, presente em Ernst, eiva o poema de Alberti, e é reiterada através dos mares mudos; cantos petrificados; cumbres sin ecos.
As imagens de Lorca também estão presentes em Ernst, em Alberti, em Buñuel. Se tomarmos como exemplo “Oda al rey de Harlem”, do livro Poeta en Nueva York, encontramos imagens que são freqüentes na poesia visual de Buñuel:
Con una cuchara,
arrancaba los ojos a los cocodrilos
y golpeaba el trasero de los monos.
Con una cuchara.
Fuego de siempre dormía en los pedernales
y los escarabajos borrachos de anís
olvidaban el musgo de las aldeas. (…)
Con una cuchara… Os olhos do crocodilo eram arrancados, enquanto o olho é cortado por uma navalha em Un chien Andalou. O olho cortado e a lua atravessada pelas nuvens são imagens circulares que reiteram a ideia de uma rima plástica no filme de Buñuel. As formas circulares no filme não possuem apenas o significado imediato, mas revelam a própria construção centrípeta do filme: são círculos em movimento de fuga para dentro de si mesmos. O olho é emblemático em Buñuel – um corte que convida a todos a olhar para dentro. Em Lorca e Buñuel há uma mutilação – do olho. E há a lua, além de um convite para sair-se do cotidiano e enfrentar os demônios inconscientes.
Já para Luis Cernuda: “Solo encuentro apetecible un Éden donde mis ojos vean el mar transparente y la luz radiante de este mundo; donde los cuerpos sean jóvenes, oscuros y ligeros; donde el tiempo se deslice insensiblemente entre las hojas de las palmas y el lánguido aroma de las flores meridionales”. Mais adiante este paraíso é situado: Andaluzia, que para o poeta traduz-se em uma palavra – felicidade.
Como muito bem assinalou José Luis Cano[4], em Cernuda a visão do paraíso oscila entre uma visão edênica de sua terra enquanto paraíso humano e uma visão pagã intimamente helênica. Para Cernuda, a perda do paraíso situa-se num forçado exílio imposto por uma guerra. No momento em que alguém cortó la piedra en flor, sem que esta mesma flor pudesse dar seus frutos prometidos, corta-se toda a possibilidade de continuação da vida. Fica no entanto, como vimos, um lugar, real ou desejado. A luz segue iluminando:
(...) desbordando en la arena
desbordando en las nubes, desbordando en el tiempo,
que dormita sin voz entre las ramas.
Esta visão de um tempo suspenso tem uma importância transcendental: um tempo que transcorre sem transcorrer, antagônico à velocidade imposta pela sociedade moderna. O tempo suspenso de Cernuda remete-nos ao conceito de montagem invisível de Buñuel – a aparente ausência de movimento, não significa que este não esteja presente de uma maneira muito mais sutil, relacionando-se mais aos movimentos internos que aos acontecimentos externos.
Mais amplamente delimita-se o paraíso em Aleixandre e Alberti. A natureza não é, na obra de Aleixandre, uma caixa-de-ressonância, senão partícula de um todo (o cosmos) no qual se inclui o homem. E esta é precisamente a sua visão paradisíaca:
Entre las flores silvestres recogisteis cada mañana
el último, el pálido eco de la postrer estrella.
Bebisteis ese cristalino fulgor
que como una mano purísima
dice adiós a los hombres detrás de la fantástica presencia montañosa.[5]
Em Alberti encontramos a definição do paraíso em “Tres recuerdos del cielo”, poema de Sobre los ángeles:
No habían cumplido años ni la rosa ni el arcángel.
Todo, anterior al balido y al llanto.
Cuando la luz ignoraba todavía
si el mar nacería niño o niña.
Cuando el viento soñaba melenas que peinar
y claveles en fuego que encender y mejillas
y el agua unos labios parados donde beber.
Todo, anterior al cuerpo, al nombre y al tiempo.
Entonces, yo recuerdo que, una vez, en el cielo...[6]
Alberti definiu o paraíso como um estado mais que um lugar. Claro que o lugar – o céu – é designado; no entanto deverá ser entendido como espaço simbólico, como elemento de ascensão e não como topos. Pressentimos neste prólogo um estado pré-natal em que o sexo, o corpo, o nome, em síntese, a forma, todavia não fora criado. Espaço do sonho, tempo mítico que necessita de um histórico una vez (recordemos Cernuda: Hubo un tiempo...) suficientemente ambíguo para mediar uma eternidade e um presente. Mais uma vez aparece a luz presidindo a Criação.
Se em Cernuda, Aleixandre e Alberti encontramos claras visões do paraíso, Éden estabelecido como produto de uma memória, como aspiração e desejo da Edad del oro, em Lorca, como já vimos, este lugar constrói-se em oposição ao mundo degradado que envolve o homem. O Paraíso pode estar em Santiago de Cuba nunca em Nova Iorque. Assim existe uma visão profética mais que uma nostalgia do paraíso. Apesar de que em alguns casos, como o citado poema “Oda al rey de Harlem”, há uma memória ancestral do negro novaiorquino, que para o poeta, aspira a sua velha África. García Lorca forja o paraíso por antítese à New York, cidade que “encarna la forma extrema de la negación de lo especificamente humano, de la libertad y del amor”[7].
São muitas as dificuldades que se colocam ao homem em sua busca do Paraíso Perdido. O silêncio, a incomunicabilidade entre os seres, as barreiras e/ou petrificações que condicionam o movimento, os profundos abismos que magneticamente atraem impedindo a ascensão. Chegamos ao momento da solidão e da angústia que, se bem que manifestada com diferente intensidade nos distintos poetas estudados, encontra eco em todos eles:
ciudades sin respuesta,
ríos sin habla, cumbres
sin ecos, mares mudos.[8]
O tema do Paraíso Perdido (e da consciência da perda) é a tônica das visões poéticas de Alberti, Cernuda, Aleixandre e Lorca, uma obsessão culturalmente entranhada no homem e compartilhada vivamente por estes quatro poetas da geração de 27. Toda consciência obriga à ação e, a partir do momento em que se conhece a perda, passa-se a desejar o perdido e a tentar recuperá-lo.
O Paraiso de Luis Buñuel
Antes de realizar Un Chien Andalou, o filme, Buñuel escreveu um livro de poemas com o mesmo título. O título foi inspiração conjunta dele e de Salvador Dalí, sendo depois escolhido para seu primeiro filme. Além da inspiração para o título do seu primeiro filme, há mais coincidências na obra de Buñuel e de seus companheiros de geração. O cão andaluz não era apenas Lorca, mas era um elemento presente no imaginário comum dos três amigos (Lorca, Dalí e Buñuel), alimentado pelas imagens dos Cantos de Maldoror. Mas, se a imagem de um cão, presente emblematicamente na obra de Dalí, e presente/ausente no primeiro filme de Buñuel, reforça a idéia de ligação entre os que saíram de Espanha (Dalí e Buñuel), ligando-se mais diretamente ao surrealismo francês, e os que permaneceram, como Lorca, sem sequer assumirem-se como surrealistas, encontramos ainda outros elementos que comprovam a existência de um imaginário comum, no qual eles se moviam, e que não está necessariamente conectado com o imaginário francês.
A ideia do Paraíso Perdido não é pertença exclusiva dos surrealistas espanhóis. Podemos dizer, que de um modo geral, todas as vanguardas são utópicas – vivem em função de alcançar um determinado topos que está sempre além. O surrealismo, que sofre influências do romantismo, desloca o conceito de utopia, já que a idéia do romantismo surge, justamente, de um voltar-se para dentro de si mesmo, como se este fosse o único lugar possível de salvação. Conforme Giulio Carlo Argan, “O final da epopéia napoleônica trouxe profundas consequências para a arte. À queda do herói segue-se uma sensação de vazio, o desânimo dos jovens destituídos de seus sonhos de glória (pense-se em Stendhal).” O que faz com que o sentido da arte sofra uma modificação profunda: “Volta-se à ideia da arte como inspiração; mas a inspiração não é intuição do mundo, nem revelação ou profecia de verdades arcanas, e sim, um estado de recolhimento e reflexão”[9] (o sublinhado é meu).
Assim sendo temos que, o surrealismo constrói uma utopia do espírito – um lugar que precisa ser alcançado para a realização plena de sua arte. No surrealismo espanhol, este lugar está no passado: o Paraíso Perdido, a Edad del Oro, um circuito a ser percorrido pela memória para que ela consiga fazer-nos reencontrar o que foi perdido e que poderá ser recuperado através da arte. O Paraíso dos poetas a que nos referimos, como já foi dito antes, em alguns casos mais que em outros, está também intimamente ligado ao paraíso adâmico. No surrealismo francês a idéia de paraíso está mais próxima de um estado de alma que nos liga ao passado, ao princípio, à infância, do que mesmo ao paraíso revelado pelo Génesis[10].
Na obra de Buñuel, apesar de sua inserção no surrealismo francês, detectamos a presença do paraíso adâmico. Em La mort en ce jardin, a selva envolve a cidade e é através dela que os foragidos podem encontrar a salvação (e também a perdição). Freddy Buache diz:
Así, tanto Robinsonm (sic), confinado en una isla, como el grupo de La mort en ce jardin, caminando por una selva virgen (...), todas estas gentes se han visto impelidas hasta el límite de sí mismas, condenadas a abandonar cualquier disfraz intelectual o moral y a mostrarse sin fingimientos tal como son; es decir, como aquello que, consiguientemente, perfila la razón de ser de las máscaras y los disfraces en nuestra civilización, y en un modo particular la razón de ser de la Máscara de las máscaras: Dios.[11]
Mesmo com seu professado ateísmo, graças a Deus, a presença de elementos ligados à mitologia cristã eivam a obra de Buñuel. Elementos presentes já em L’Âge d’Or. Sabemos que aqui estes elementos aparecem, de um modo geral, em forma de paródia – como no caso de Viridiana, mas são obsessivos, expondo os traços de hispanidad que vão acompanhá-lo sempre. Em La mort en ce jardin, a presença da selva é emblemática. A volta ao paraíso é o caminho da salvação e também da perdição. Em vez de ser uma volta a Deus é um retorno ao homem. Como em Breton, l’homme propose et dispose. Conforme Kyrou, o papel da religião é o autêntico protagonista deste filme: “Se mire como se mire, este filme es un admirable grito de afirmación del hombre y una negación total, absoluta, de la mística religiosa”.[12]
Apesar de condenar vivamente a religião, Buñuel não deixa de encená-la. E mais que a religião, a sua condenação recai sobre a civilização – o homem perde-se a si mesmo quando é domesticado pelos processos civilizatórios. O retorno às origens é a saída possível para curar uma civilização doente, que além de promover processos de mascaramento, aprisiona os homens em atos e gestos que nada significam. Cai-se então no vazio. É importante observarmos que no surrealismo francês há um ataque a um determinado processo civilizatório que levou ao aburguesamento (e consequente embotamento) dos sentidos. Mas as imagens que povoam as obras francesas não possuem o sentido místico e religioso dos espanhóis. O cinema de Buñuel constrói-se então sobre um duplo eixo – fiel ao imaginário espanhol, não deixa de recorrer ao ideário dos franceses.
Quanto aos outros aspectos citados anteriormente: mutilação, as estátuas, e o bestiário que obceca os poetas do surrealismo espanhol, facilmente encontramos correspondentes na obra de Buñuel. A mutilação está presente desde seu primeiro ato: o olho cortado de Un chien andalou[13]. Como em Lorca onde, Con una cuchara, arrancaba los ojos a los cocodrilos, com uma navalha Buñuel corta um olho, tornando este gesto o emblema de toda a sua obra.
As estátuas que em Alberti significam não comunicação, paralisia, morte, estão presentes, por exemplo, em L’Âge d’Or. Buñuel, em sua "Autobiografía" diz:
“Mi infancia transcurrió en una atmósfera casi medieval (…). Creo necesario hacer notar aquí (dado que ello explica en parte la tendencia de la modesta obra que luego realizaría) que los dos sentimientos básicos de mi infancia, que perduraron hasta bien entrada la adolescencia, fueron los de un profundo erotismo, al principio sublimado en una gran fe religiosa, y una permanente conciencia de la muerte”.[14]
Erotismo e morte entrelaçados nas estátuas de L’Âge d’Or, revelando que, apesar da tentativa de imersão total no surrealismo francês, Buñuel permaneceu espanhol.
O surrealismo espanhol não gerou manifestos, chegou mesmo a refutar a ideia de um surrealismo, mas acabou por, efetivamente, ir até mais fundo no desvio proposto pelos franceses. Sánchez Vidal refere-se a Dalí e Buñuel, mas podemos estender esta afirmação para os poetas que deixaram um vasto legado imagético que atravessa todo o século.
A plástica surrealista espraia-se por todas as artes, sendo a mesma tanto na pintura quanto na literatura e no cinema. O cinema de Buñuel realiza plasticamente uma certa literatura, que não é só dos seus compatriotas, mas de sua própria poesia, escrita antes de tornar-se um realizador de cinema. E sua obra, como vimos, reflecte sobre a desumanização progressiva do homem ao afastar-se da natureza e ao ligar-se inexoravelmente a uma cultura castradora e maquínica. Como seus companheiros de geração Buñuel mostrou-nos a sua visão da queda do homem após a sua expulsão do Paraíso. Ortega y Gasset preconizara a desumanização da Arte. Buñuel e seus companheiros de geração buscaram, através da sua arte, a re-humanização da Vida.
Notas
[1] André Breton, Entretiens, Paris, Gallimard, 1952, p. 248.
[2] Gaston Bachelard, La terre et les reveries de la volonté, Galliamard, Paris, 1976, p. 8.
[3] Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, pp. 80 e 82.
[4] José Luis Cano, La poesía de la generación del 27, Madrid, Gredos, 1970.
[5] Vicente Aleixandre, Poesías completas, Madrid, Aguilar, 1960, p. 74.
[6] Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 174.
[7] Emilia de Zuleta, Cinco poetas españoles, Madrid, 1971, p. 253.
[8] Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p.80.
[9] Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p.28.
[10] No prefácio ao livro de Breton e Soupault, Les champs magnétiques, Philippe Audoin, na p. 24, afirma: “Sans doute Breton ne pouvait-il que rejeter les présupposés spiritualistes de la théorie de Myers. Mais il reste – en ceci l’analyse de Starobinski est pleinement convaicante – que pour lui, l’inconscient apparaît moins comme un «réservoir de pulsions», un animal honteux enfoui dans les culs-de-basse-fosse de notre mémoire, que comme une sorte de dieu caché. Qu’on s’entende: pour Breton, nulle transcendance n’est concevable, ni même tolérable. A ses yeux, ce que certains tiennent pour le divin, n’est qu’une faculté humaine détournée et mystifiée par les soins des «dresseurs» et en ceci, il se situe pleinement dans la ligne de Rousseau. Il suffit que l’homme «propose et dispose»”.
[11] Freddy Buache apud Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel - obra cinematografica, Madrid, Ediciones J. C., 1984, p.207.
[12] Ado Kyrou apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 211.
[13] Em La arboleda perdida, livro de memórias de Rafael Alberti, este recorda: “En medio de estos días y de este campo de batalla, no literaria ya, sino veradera, apareció, como un cometa, Luis Buñuel. Venía de París, la cabeza rapada, el rostro aún más fuerte, más redondos y salidos los ojos. Llegaba para mostrar su primera película, hecha en colaboración con Salvador Dalí... El filme impresionó, desconcertando a muchos y estremeciendo a todos aquella imagen de la Luna, partida en dos por una nube, que conduce inmediatamente a la otra, tremenda, del ojo cortado por una navaja de afeitar. Cuando el público, sobrecogido, pidió luego a Buñuel unas palabras explicativas, recuerdo que éste, incorporándose un momento, dijo, más o menos, desde su palco: “Se trata solamente de un desesperado, un apasionado llamamiento al crimen.” (Apud Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel, pp. 90-1).
[14] Buñuel apud Augustín Sánchez Vidal, “Buñuel and the flesh”, in C. Brian Morris (Ed.), The surrealist adventure in Spain, Ottawa, Dovehouse Editions, 1991, p.206.