Em suas divagações sobre o amor, o poeta dissera em seu romance:
Mas que sentimento é esse que invade meu coração? Como é possível experimentar tamanha felicidade e ao mesmo tempo sentir essa dor que parece dilacerar meu coração? Será isso que chamam de amor?
A vivência de dois sentimentos opostos na experiência anímica do amor na verdade é um fenômeno bastante comum e facilmente salta das linhas do poeta para a realidade da vida cotidiana. No relato de queixas de usuárias e usuários do SOSAMF, manifestações de bem estar e desconforto/conflito nas relações afetivas com o parceiro constituem um tema recorrente, podendo chegar ao extremo da violência.
Este aparente paradoxo parece estar contido na natureza do fenômeno amoroso, pois as duas condições anímicas apontadas acima parecem estar indissociavelmente unidas, sendo que facilmente se transita de um extremo ao outro.
Sobre a felicidade por um lado, não é preciso pensar muito para entender porque nos sentimos assim. Considero que após a satisfação de suas necessidades básicas de alimento, proteção, segurança, amar e ser amado, sem dúvida é a necessidade mais essencial do ser humano do ponto de vista psicológico. Estar nessa situação miraculosa nos leva a uma sensação de totalidade experimentada na fusão com o sexo oposto e de expansão das fronteiras do ego que é sentida como felicidade. Ter alguém como uma referência afetiva e para quem se possa manifestar plenamente, alguém para quem você seja especial e que se constitui em uma presença em nossa vida capaz de mudar a configuração das coisas e o rumo dos acontecimentos, de fato faz toda a diferença do mundo. Isto se equipara a poder resgatar de alguma maneira a unidade perdida com a mãe em nossa primeira morada (o útero materno). Verdadeiramente, um “amor sem mácula”, um imprint capaz de acolher todas as nossas projeções e fantasias do(a) parceiro(a) ideal.
Por outro lado, entendo que a dor do amor nasce no exato momento em que o indivíduo começa a se sentir amado(a), pois decorre do medo da perda desse amor, do risco da entrega do seu coração a outrem... E se ele não souber “cuidar bem do nosso coração”, e se ele não é capaz de nos enxergar no mais recôndito de nossas almas, nos sentimos expostos e ficamos à deriva. E esta dor é tanto maior quanto maior for o seu amor ou a sua entrega. Todos nós temos “feridas de amor” - decepções e frustrações provenientes de relacionamentos anteriores. Tememos que se repita. Ou a perda pelo simples fato de que sabemos que tudo é finito neste mundo. Enfim, quando nos apaixonamos nos tornamos vulneráveis. Esperamos que o outro nos dê um sorriso, ou faça isto ou aquilo e se ele não faz é porque não nos ama. Nossas inseguranças emergem à superfície e se maximizam quando estamos nesse estado de graça. Enfim, é um “Deus nos acuda!”. E por isso que muitas pessoas mandam o parceiro embora ou o rejeitam antes que ele supostamente faça isso primeiro, ou nem iniciam o relacionamento para não experimentar a experiência avassaladora de solidão, fragmentação, desunião, desamparo, frustração, dor. Por outro lado, outras pessoas já vão com muita sede ao pote fazendo com que ele se quebre. Há ainda outras que agem com cautela, sentem primeiro o terreno antes de dar o próximo passo (supostamente o caminho do meio parece ser o mais sensato).
Há que se considerar ainda as manifestações de violência nas relações amorosas. A violência parece ser uma reação aberrante, que demonstra uma falência dos processos adaptativos do ser humano ou uma prova de sua incapacidade de lidar com o turbilhão de emoções que são despertadas dentro de si quando começa a se sentir traído em suas expectativas (ele não foi amado da forma como gostaria ou não pode reviver a experiência de fusão com a figura materna pelo simples fato, por exemplo, da chegada de um filho ou porque simplesmente a companheira deixou de amá-lo). Adequar expectativas e viver de acordo com o princípio da realidade costuma ser um exercício difícil para uma boa parte das pessoas e exige um certo nível de maturidade e equilíbrio emocional. Sobretudo o que é sentido como abandono é muito difícil de ser suportado e a pessoa antes amada passa a ser sentida como o “inimigo” ou um competidor. Isto facilmente acirra o ódio e as tendências mais obscuras do ser humano, que até então jaziam na sombra em estado de latência. Instaura-se uma “guerra,” onde só pode haver um ganhador e um perdedor. Isto justifica porque a grande maioria dos assassinatos ocorre quando o casal está em processo de separação ou uma das partes faz menção de sair da relação.
Todos esses processos envolvidos fazem pensar na complexidade do fenômeno amoroso, facilmente capaz de instigar o medo de amar e de se entregar a outrem. O medo talvez seja o maior entrave que impede a humanidade de avançar. Por outro lado, é o medo que nos impede de pular do último andar de um edifício. Sempre o paradoxo.