Vida conversável é título de uma das obras de Agostinho da Silva e que começa por falar de “cama de gato”…"eu acho que na vida o que há é um jogo perpétuo de crianças com a cama do gato”.
De facto a VIDA apresenta-nos problemas e a nossa habilidade é, segundo Agostinho, “tornar a ser criança para ver como é que sai a cama do gato”. Porque, desse modo, nós conseguimos fazer e desfazer atabuada do tempo; conseguimos sintetizar no sentido etimológico a que Agostinho da Silva faz apelo, que é “juntar coisas diferentes”; conseguimos neutralizar as oposições e jogar às escondidas com os obstáculos.
Então, talvez aí se cumpra o ideal que Agostinho preconiza “…talvez que o ideal da Humanidade, um ideal muito importante, hoje na História, é passarmos do previsível ao imprevisível”.
Será, talvez, termos um vazio disponível ao amor, à surpresa, ao tal imprevisível. Passamos a vida a programar a vida, a fazer planos, a depositar sonhos num tempo não válido, que não existe: o futuro.
-Porque não deixamos nós que os embriões do tempo nos surpreendam, nos dêem presentes com laços de nós, que ainda ignoramos?
A vida pode ser uma Escola de Lego em desconstrução. Nós podemos ser os deuses de trazer por casa que se destroem e reconstroem numa heteronímia Pessoana, numa procissão de “eus” que podem não ser mais do que “Heterónimos de Deus” como afirma Agostinho da Silva. Nós devemos querer ir além de nós, libertarmo-nos das cruzes verticais e horizontais que todos somos e “libertar as nossas personalidades, hoje extremamente reprimidas…” Quando crianças, nós libertamo-nos mais facilmente, é talvez por isso que as crianças possuem o ódio em estado líquido! Não o retêm, não o solidificam como os adultos. A criança, pelo contrário, solidifica os sonhos e deixa facilmente cair a realidade em pedaços. Como diz Agostinho, há que “transformar-se em cigano. Derrubar muros”.
Erguer os corações ao alto e sonhar! Deixar que o mundo seja a nossa casa e que a errância seja um modo de vida; o desapego uma forma de conforto e o multiplicarmo-nos a nós mesmos em mil e uma atitudes, numa forma de generosidade. Há que ter prazer em escolher sem ter medo que as escolhas não sejam definitivas, porque, segundo Agostinho da Silva, a propósito de Descartes, “o pensamento existe, caro amigo, e tudo oque existe é apenas uma série de jogos de pensamento”.
E nós? Nós somos seres pensantes em simultâneo. Jogos de caos e cosmos; de desordem e harmonia, de lógica e paradoxo; arco-íris a preto e branco.
Agostinho da Silva chama a atenção para o facto do absurdo: a vida, a morte, a ideia de Deus; tudo isso são coisas extraordinárias que ultrapassam a nossa limitada e pobre humanidade…Tudo isso são coisas do Espírito, de um espírito de criança que o povo português venerou ao longo do tempo: o espírito santo.
Viajemos ao século XIV, ao tempo da rainha Santa Isabel, uma rainha extraordinária para a sua época e portadora de doutrinas que apelam para o facto de serem as crianças que devem dizer qual a escola que querem frequentar e o que desejam aprender- talvez seja a fazer perguntas- talvez seja aprender o caminho da Floresta. Talvez saber o que é um milagre, talvez seja querer pintar a ilha dos Amores ou fazer um filme sobre Platão, ou apenas, como refere Agostinho da Silva “abandonar-me completamente ao que vai acontecendo pelo mundo”; isto é, a uma escola feita de experiências ao sabor do vento, lendo de manhã à noite os sinais que nos são enviados, respondendo a esses mesmos sinais, não como actores no palco da vida, mas como personagens que podemos desenvolver em nós mesmos.
A lua é um sinal para ser lido. Ela é luz e escuridão. Também nós somos santos e pecadores, globos de luz e trevas em cruz. Como diz Agostinho “a lua é um bom exemplo do que provavelmente são as coisas do nascimento, somos astros com e sem luz própria, navegadores e o próprio mapa em que navegamos. Somos os amadores que se transformam nas coisas amadas. Somos alteridade. Saudade e desejo, passado e futuro, mas não nos esqueçamos de que possuímos os lábios para falar, agir e escolher no Presente".
É preciso não esquecer que as nossas mãos são as bússolas do nosso Destino, de que os olhos são capazes de dizer que as flores são apenas estrelas cansadas; é preciso não esquecer que os nossos ouvidos são capazes de escutar os segredos das catedrais e que a maior Catedral de todas é uma catedral de dedos. Portanto é preciso não nos esquecermos de nós, da nossa alter-actividade, daquilo de que somos capazes.
Esta é uma das mensagens de Agostinho da Silva: um apelo ao nosso crescimento enquanto pessoas, um chamar de atenção para o grande pedagogo que Fernando Pessoa acabou por se revelar, ao levar ao extremo os desdobramentos possíveis do “eu”, uma alteridade pedagógica a ser consciencializada pelo ser humano.
“Quem tem uma obra, a obra o tem; quem traz mensagem a há-de ler perante o rei; arqueja, mas lê, sufoca, mas lê, e depois de ler cairá por terra, mas já a leu…”
Sete cartas a um jovem filósofo. Agostinho da Silva
O educar estético será aquele que corresponde ao deixar crescer com toda a força o ramo que mais nos agrada. Como refere o filósofo português, trata-se de uma jardinagem ao nível da paisagem interna e que fará talvez, com que os frutos ultrapassem as promessas das flores como já afirmava Rimbaud. É ir sendo num Presente Contínuo e que porque é vivo “parte todas as molduras para regressar à liberdade de selva". Tomar consciência da multiplicidade que somos e viver essa heteronímia, defende Agostinho da Silva, é “ser fiel a todos pois todos são tu”, mas para isso é preciso um fermentar do conhecimento sensível, diz o filósofo que “Em lugar de ´penso logo existo, empregue o ´sinto
e só existo quando sinto e por sentir o universo existe”. Um complemento à pergunta de Pessoa: “De que cor será sentir?”
• Trata-se do elogio de uma razão sensível, como aliás o vem fazendo o sociólogo Maffesoli. Trata-se de associar a uma ética pessoal e social uma estética do sensível e das emoções: “A dor só é realmente fecunda quando a amamos, quando a vemos como indispensável à escultura que se está fazendo na nossa alma” (A:S).
• É a vivência da obra de arte ou a interpretação da mesma que pode provocar uma hermenêutica da própria moral -que por sua vez se tornará uma tarefa ética. É na manifestação do sensível, sem medos, tabus ou preconceitos que a liberdade de escolha, que o livre-arbítrio tomará forma. Uma forma de vida, uma espécie de bioética, seja num corpo físico, linguístico ou místico, já que todos são corpus, isto é, formas de ser e estar no mundo e portanto VIDA.
• Talvez aí possamos tomar consciência da nossa força, talvez aí, como anuncia o próprio Agostinho “você há-de dar tudo o que puder, porque só há homem quando se faz o impossível; o possível todos os bichos o fazem”. Daí a importância da imaginação, de nos ultrapassarmos a nós próprios, de ir preenchendo os espaços que a realidade vai deixando disponíveis, daí a importância de uma Ética pessoal e social, de “ser companheiro…vale mais do que ser chefe…vai ser esta para você a mais difícil de todas as artes, mas oxalá não lhe faltem os recursos afectivos…” ( A.S).
• Daí a importância como refere o filósofo de “nos governarmos a nós mesmos” com todo o plural, com todos os mitos reinantes e todos os futuros possíveis. Todavia o verdadeiramente importante é como um dia proferiu José Régio: ir por onde nos guiam os nossos próprios passos, que a escolha seja a nossa escolha, que sejamos nós a interpretar, a fazer a hermenêutica dos nossos próprios sonhos, das nossas vontades, da nossa História de Vida. Que sejamos nós a cumprir o nosso Fado. Esse cumprir é para Agostinho da Silva o verdadeiro livre-arbítrio.
• Não tenhamos pois medo de nos revisitarmos: aos nossos lutos, às nossas vontades e motivações as nossas memórias e sonhos. Tenhamos a coragem de assumir as nossas contradições e de tentar atingir as verdades possíveis nesta vida presente.
• É, de facto, num eufórico carpe diem que Agostinho da Silva se situa, é um filósofo educador que nos apela para que solicitemos da vida tudo o que possa desenvolver e afirmar a nossa pessoa. É também um construtor de pontes, feitas de símbolos e de intersecções, metáforas e labirintos onde se pode ler a natureza humana. Isto manifesta-se nos seus escritos. A escrita de Agostinho é uma escrita de si, uma escrevivência e ao lê-lo, ao interpretá-lo, podemos facilmente reconhecer outros rostos, talvez os seus parentes mais próximos: Pessoa, Sophia, Platão, Pessanha, Nietzsche e tantos outros…Como refere Foucault na obra: O que é um autor ? “ É a própria alma que há que constituir naquilo que se escreve; todavia tal como um homem traz no rosto a semelhança natural com os seus antepassados, assim é bom que se possa aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos que ficaram gravados na sua alma. Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora, deve tornar-se possível formar para si próprio uma identidade através da qual se lê uma genealogia espiritual inteira…”
• É esta correspondência dentro da correspondência (por ex: in Sete cartas a um filósofo) que se estabelece, fazendo aparecer o rosto próprio junto aos outros rostos que ele foi assimilando, estabelecendo pontes, associações; enfim, um pensamento em rede que mostra claramente uma estética da existência, o governo de si e dos outros através de uma ética pessoal e social: duas vertentes que conduzem ao terceiro elemento desta trilogia: a liberdade de escolha.
• Por tudo isto Agostinho é um “animal incómodo” como diria José Cardoso Pires, e eu acrescentaria -Agostinho da Silva é um exemplo de liberdade de escolha- de alguém que assume as suas contradições, que aponta para o impossível e que “gostaria de beber da fonte de que brotariam juntas a lógica e a fantasia” como ele próprio diz. Agostinho é um exemplo de alguém que toma consciência da pedagogia do imaginário e da sua importância para iluminar a condição humana.
• Cabe-nos a nós agora cuidar dessa beleza das Formas Sensíveis, iluminando-as com o nosso olhar, com as nossas palavras e com os nossos actos. Há que ser rosa, caravela e navegar…