“El sueño de la razón produce monstruos” - Goya
Após uma participação mais ou menos ativa na I Guerra, por parte de alguns movimentos de vanguardas, os artistas europeus não resistiram ao horror da guerra que veio a seguir e refugiaram-se numa espécie de estupor, onde as imagens da guerra foram banidas porque estavam demasiado presentes e por serem extremamente reais. Através da análise da obra de dois artistas, Zoran Mušič e Francis Bacon, pretendo refletir sobre o silêncio da arte europeia no pós-II Guerra.
Para Régis Debray “é uma banalidade verificar que a arte nasce funerária, e renasce apenas morre, sob o aguilhão da morte”. E conclui, posteriormente, que “as sepulturas foram os museus das civilizações sem museus, assim também nossos museus são, talvez, os túmulos característicos das civilizações que já não sabem edificar túmulos” (1993: 22). A arte nasce da morte porque a humanidade desejava ser imortal e, através das imagens de si mesma, convertia o seu desejo em obras que perdurariam para além da sua frágil existência. A figura humana, em suas diversas formas, mais ou menos simbólicas, mais ou menos perfeitas tecnicamente, mais ou menos belas, sempre foi um dos principais motivos da arte ocidental. Teoricamente, o início da História da Arte no ocidente é celebrado com as obras dos gregos que, liberados da obrigação simbólica de converter homens em deuses, tentaram criar, com suas mãos, imagens de homens e mulheres que representassem a ideia que eles tinham do real.
A presença do humano na arte confunde-se com o nascimento mesmo daquilo que chamamos de arte ‒ obras que em seu momento tiveram funções diversas, rituais, celebratórias ou mágicas, mas que a história passou a considerá-las como parte do grande acervo artístico ocidental. O corpo mimético começa a desaparecer da arte no início do século XX para ressurgir um outro corpo, fragmentado, reflexo de uma civilização à beira do abismo da I Grande Guerra. Podemos dizer que a fragmentação da figura humana nas artes visuais foi compensada pela aparição do corpo cinematográfico, cujo ecrã especular mostrava, em tamanho hiperdimensionado, corpos em movimento que encantavam um público crescente.
Através da análise do fim do século XIX, René Huyghe mostra-nos o caminho inexorável que os artistas acabarão por trilhar no século XX. Um caminho que reflete a incomunicabilidade e o declínio, não só da civilização ocidental, mas do próprio conceito de civilização. A opção pelo não figurativo na arte nada mais é que uma tentativa de escapar dos “sobejos do mundo visível”. A arte desiste de ser um reflexo da imagem humana e passa a refletir sobre a própria ideia de humanidade. A figura humana, presente em obras como a do artista italiano Giorgio De Chirico, aparece como estrutura obsessiva que exclui qualquer possibilidade de vida: são manequins e autómatos que atualizam o pesadelo de Goya. Os monstros gerados pela arte irão cada vez mais levar-nos a uma descida às trevas que pairam sobre a civilização europeia.
Apesar das descobertas da ciência e dos avanços tecnológicos, os artistas das vanguardas sentiam que era necessário representar o vazio que se instaurava na Europa, e no mundo ocidental. Sentiam-se incapazes de preencher este espaço deixado pelo fim das diversas crenças que alimentaram o século XIX e decidiram que o contributo que arte poderia, ou deveria, dar era o de representar os indícios da derrocada de um modelo de civilização. “No entanto, neste vazio, os artistas constroem muitas vezes uma realidade (…) Já no Surrealismo, Max Ernst gostava de erigir, como uma muralha intransponível, blocos de pedra numa esquadria curiosa onde, por vezes, se abrem estranhamente olhos” (HUYGUE, 1998: 270).
A II Grande Guerra e o fim das utopias
Cubistas, dadaístas, surrealistas, futuristas, expressionistas e todos os outros movimentos de vanguarda do início do século XX tinham algo em comum: acreditavam que a arte, a nova arte criada por eles, seria capaz de mudar o mundo. Experimentaram novos materiais, novos conceitos, novos suportes. Experimentaram novas maneiras de representar o humano, através da fragmentação, da negação do ponto de vista único da perspetiva linear, da simplificação de linhas, do despojamento ou do excesso. O corpo, na arte, era um novo corpo, construído à medida para uma nova era. Todos os artistas das vanguardas históricas transformaram a sua arte num manifesto ao novo, a um possível e desejável futuro, a um futuro que seria construído sob os escombros de uma grande guerra. Ou então, como os expressionistas, projetavam no passado o possível futuro da humanidade. Mesmo os dadaístas que fizeram da sua arte um manifesto contra o artista demiurgo, transformando os criadores em observadores privilegiados, em recolectores de objetos do quotidiano, viam na arte um caminho possível.
Com a chegada súbita, mas anunciada, da II Guerra, os artistas foram sendo dispersados pelo mundo. Da Europa rumaram, ou voltaram, para os Estados Unidos e enfrentaram a nova face do medo. Se a I Guerra ainda foi corporificável, a II não tinha uma face visível, tal era o horror que suscitava. Num mundo onde a incomunicabilidade tornara-se um problema de dimensões mundiais, paradoxalmente os novos meios de comunicação funcionavam como dispositivos de exibição de um mundo idealizado e expandido, cujo novo centro civilizacional estava situado fora da Europa.
Theodor Adorno, um dos grandes pensadores da Escola de Frankfurt, afirmou que seria impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Esta ideia provocou um debate aceso entre os intelectuais e artistas do pós-guerra porque, afinal, a arte aparecia como uma possível forma de representação ou de sublimação do horror que fora experienciado por milhares de seres humanos. De qualquer forma, Valeriano Bozal diz que a arte e a literatura do anos 40 e 50 “estuvieron sometidos a las fuertes presiones de un mundo que parecía no poder ser dicho” (2003: 13). Um mundo em ruínas, já anunciado pelo Angelus Novus do artista suíço Paul Klee. Um anjo que é empurrado para frente, mas que olha, aflito, para o passado do qual não se consegue libertar. Uma figura que foi analisada nas teses do filósofo Walter Benjamin e que representava, na sua visão, o porvir da Europa e do mundo.
O ideário das vanguardas ainda acompanhou alguns artistas e refletiu-se em movimentos como o Expressionismo Abstrato, primeiro grande momento da arte no pós-II Guerra. Artistas como Pollock ou Rothko assumiam, nas suas obras, o silêncio do mundo visível que se tornara irrepresentável, mas as suas obras ainda aspiravam a alguma transcendência. Na Europa, o ar estava irrespirável e alguns artistas, e movimentos, reproduziram o clima de terror absoluto criando obras que lembravam a utopia passadista de algumas vanguardas, buscando o passado idílico, não na natureza, mas no próprio homem, na sua infância, antes de ser corrompido pela cultura, caso do Grupo Cobra ou da Arte Bruta. Ou, simplesmente, fugiram da representação mimética e/ou realista do mundo. Caso do artista Zoran Mušič. Ainda na Europa do pós-guerra Francis Bacon, seguindo a genealogia do espanhol Goya, produzia seus monstros: figuras disformes, como que apanhadas num momento em que revelavam seu espanto, seu estupor.
Um artista e o trauma da guerra
Zoran Mušič, artista esloveno, foi detido e ficou preso em Dauchau em 1944 de onde só saiu no fim da Guerra, em 1945. Foi-lhe dado a escolher: tornar-se um espião, membro das SS ou ser prisoneiro num campo de concentração. Ele escolheu a segunda opção que o levou para Dauchau onde presenciou a morte de diversos amigos e de desconhecidos. Conseguiu, durante a sua estância ali, representar o que via, com giz ou lápis, utilizando folhas retiradas de livros da biblioteca do campo de concentração, produzindo mais de 200 desenhos. Destes desenhos conseguiu salvar apenas cerca de 70. Os desenhos eram claramente influenciados pela obra de dois grandes artistas, considerados mestres por Mušič: Goya e Rembrandt.
Da obra de Goya encontramos, nos desenhos do artista esloveno, a minúcia dos detalhes nos pequenos formatos, bem como os traços selvagens, tortuosos, que tornam as figuras quase fantasmagóricas. De Rembrandt encontramos a capacidade que este tinha de isolar um rosto no meio de tantos e de, ao mesmo tempo, convertê-los todos em rostos de homens comuns. O claro-escuro das suas águas-fortes transparece nos desenhos a lápis que Mušič produziu entre 44 e 45 e que foram salvos, juntos com ele, do grande Holocausto.
A obra de Mušič compunha de corpos. Corpos amontoados, em improvisados carros funerários, homens enforcados, corpos deitados fora como lixo. Para Bozal, há uma forte consciência dramática nos traços deste artista, o que o torna muito próximo dos desenhos negros de Goya e da obra de Egon Schiele. Zoran Mušič disse que nunca teve uma intenção documental, apesar de sua obra ter-se convertido num importante retrato do pesadelo da II Guerra. Numa entrevista ao Le Monde, em Abril de 1995, quando confrontado com a ideia de ter revelado ao mundo “uma visão abominável”, ele responde: “Il le fallait. C’était abominable, mais c’était nécessaire. Je ne pouvais pas faire autrement. Dans le camp, il y avait une usine d’armement, avec des bureaux pour architectes. On m’y a mis un moment, j’ai pu prendre du papier, j’ai commencé…C’étaient des dessins descriptifs. Dans ces corps amaigris, les mains, les pieds et les sexes devenaient très importants. Et la structure, les doigts très fins, d’une finesse incroyable. Egon Schiele a dessiné des mains ainsi, mais il me semble que ce sont des dessins trop voulus, trop théâtraux. Schiele a cultivé ce genre, alors que, chez moi, c'était simplement le fait de l’observation”.
O motivo demandou o tipo de desenho que Mušič produziu. O drama não estava nos traços nem na composição em si, estava além, na própria realidade que o circundava. Depois de sair de Dauchau, o artista passou muitos anos a pintar ou desenhar apenas paisagens e muitas delas abstratas. Mesmo que estas paisagens deixassem transparecer uma certa atmosfera de desconforto, como se o mundo estivesse em suspensão, eram paisagens que nada tinham a ver com os retratos produzidos durante a sua prisão. Voltou-se para um abstracionismo muito particular, como forma de reafirmar que, diante do indizível, não havia nada que a arte pudesse fazer. Só em 1970 é que ele volta à figura humana numa série de desenhos e pinturas que denominou Nous ne sommes pas les derniers.
Nós não somos os últimos é uma série que reproduz, obsessivamente, a ideia dos desenhos de Dachau: a morte, o flagelo, a despersonalização do homem que se converte em cadáver, ao lado de tantos outros, atirados em valas comuns. O rosto de cada uma das figuras denota um desespero mudo retratado numa boca aberta que, sabemos, incapaz de produzir qualquer som. Mais uma vez os traços de Goya que anunciam o Expressionismo e a assunção plena da dramaticidade, presente nos traços de Egon Schiele. Os corpos distorcidos e alongados remetem-nos à obra de Giacometti, outro artista que Mušič admirava.
Para Bozal há, na série Nous ne sommes pas les derniers, uma tentativa do artista demonstrar que o horror não acabou, que a figura humana é esvaziada e desumanizada em diversas ocasiões e que aquelas figuras não são apenas ecos de Dachau ‒ os cadáveres sem substância, como se estivessem ocos, são memórias reelaboradas e transpostas para a contemporaneidade: “la memoria se convierte de este modo en marco donde elaborar el presente” (BOZAL, 2003: 31).
O presente é vivido através do filtro da memória que, de maneira obsessiva, reinscreve a história continuamente no ciclo da vida. Na citada entrevista ao Le Monde, Mušič acaba por dizer: “J’aurais pu illustrer. Ce n’aurait pas été difficile. Je ne voulais pas. J’attendais que cette vision prenne une forme dans ma mémoire. Elle était en permanence devant moi, ces cadavres allongés. Pour réussir à sortir une lumière de cela, il aurait fallu un Goya peut-être. Il me semble que je n’ai pas réussi comme je l’aurais voulu. Ce n’était pas possible peut-être. Si j’ai réussi à donner à celui qui regarde un peu de mon émotion, c’est déjà beaucoup”.
Foram necessários 25 anos para que o artista esloveno conseguisse recuperar as imagens que traumatizara ao sair de Dachau. Diante do horror real, à arte, muitas vezes, só resta o silêncio.
Os monstros de Francis Bacon
A obra do pintor irlandês Francis Bacon retrata, de outra maneira, uma visão pessimista e cruel da figura humana e, talvez, da própria ideia de humanidade. Seus quadros reproduzem um horror indizível presentificado nas formas e nas cores com as que compõe suas figuras. Admite que foi influenciado pelo cinema de Fritz Lang e de Sergei Eisenstein que teve oportunidade de ver quando da sua passagem por Berlim nos anos 20. O Couraçado Potemkin deu-lhe a conhecer os rostos estupefactos das pessoas na famosa cena da escadaria. Rostos desumanizados pela dor, pelo desespero, mudos na sua condição de sombra projetada num ecrã e na sua condição de seres anônimos, atravessados por uma batalha que não era deles, mas que os atingia a todos de forma cruel.
Bacon apropria-se da obra de Velázquez, Papa Inocéncio X e atualiza a imagem, sobrepondo-lhe um grito de horror, inspirado numa personagem do filme de Eisenstein. Além do grito, as cores retratam uma ideia muito comum à obra do artista irlandês, a putrefação. Corpos putrefactos ou mutilados, desinvestidos de qualquer indício de beleza ou de equilíbrio povoam o universo de Bacon. Um dos quadros mais significativos do seu período pós II Guerra, Man with dog (1953), reproduz a visão do homem naqueles dias: uma sombra sem rosto ao lado de um animal quase humano, numa rua escura.
O homem é apenas uma sombra, não tem substância, volume, peso. É uma mancha no passeio que se alastra pela parede. O cão tem um rosto humanizado e traduz uma espécie de angústia profunda na sua figura retorcida, levado por uma trela, olha na direção de um bueiro. Mais uma vez a presença do mestre espanhol, Goya, que influenciou a obra de Mušič, aparece aqui como presença reclamada neste quadro de Francis Bacon. O quadro de Goya, El perro, representa um cão, do qual vemos apenas a cabeça já que o resto do corpo está ocultado por uma espécie de monte castanho. Metade da obra é preenchida por um espaço vazio, para onde o cão olha. Muitas são as interpretações que este quadro, da fase das Pinturas Negras, suscitou. O quadro, também conhecido como Perro Semihundido, dá-nos a ver um cão aparentemente semienterrado que olha para o céu mas o que vê é um imenso vazio.
O vazio de um céu que já não tem respostas e nem saída para o cão, ou para a humanidade. A obra de Goya data dos anos 20 do século XIX e a de Bacon da segunda metade do século XX. Numa ou noutra a ideia de vazio é central para a compreensão do conceito por trás do quadro de ambos artistas. O vazio como única resposta para a humanidade que perdeu a fé, por razões diversas, e que se encontra irremediavelmente só.
E no final, o silêncio
Através da pintura ou do desenho, diversos artistas tentaram, se não reproduzir, refletir sobre o que aconteceu à humanidade finda duas guerras mundiais. Será que era ainda possível escrever poesia depois de Auschwitz? Está comprovado que sim, Adorno não tinha razão. Apesar do horror do Holocausto, a arte ainda consegue falar. O que mudou, sem dúvida, foi o seu discurso e a sua forma. Quando os homens deixaram de ser nómadas e assentaram, a arte deixa de ser naturalista e vai, paulatinamente, tornando-se abstrata. Os homens não sabiam como representar o invisível ‒ as forças da natureza com as quais tinham de lidar. Na falta de uma imagem no mundo que pudesse traduzir em formas o indizível, optou-se por seguir o caminho da abstração.
Finda a II Grande Guerra, os artistas perceberam que traduzir tal horror era tarefa impossível. Poderiam representar a ideia do horror. Poderiam falar sobre ela, gritar o seu nome, invocá-la. Mas não conseguiriam dar-lhe um rosto único, porque sabiam das muitas faces do horror. Assim, decidiram optar pelo silêncio. Não por se calarem ou por deixarem de criar. Mas por permitirem que as suas obras refletissem, de forma especular, sobre esta nova forma de vazio, sobre este novo silêncio que se abateu sobre o mundo, mesmo depois de a guerra acabar.
Referências Bibliográficas
ARGULLOL, Rafael. El fin del mundo como obra de arte. Barcelona, Acantilado, 2007
BOZAL, Valeriano. El tiempo del estupor. Madrid, Siruela, 2003
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Petrópolis, Vozes, 1993
HUYGUE, René. O poder da imagem. Lisboa, Edições 70, 1998