Quando Joaquim Antonio Pereira Sobrinho publicou Torre Inversa (ainda, poesia), fui convidada, gentilmente, pelo autor, para escrever o prefácio do volume. O texto, não disponível, até agora, na Internet, procura encontrar, na revista Meer, outros leitores:
Em 2005, foi publicado o livro de poemas Torre Inversa (ainda, poesia), relançado por Joaquim Antonio, em 2017, com modificações e com novos poemas. Relê-lo, na sua segunda publicação, significa, além de revisitar o poeta, reencontrar a si mesmo, por meio da retomada da leitura da primeira hora. Já descobri-lo pela primeira vez é deixar-se enredar pela potência da voz lírica que busca, como João Cabral, “cultivar o deserto/ como um pomar às avessas”, por meio do rigoroso trabalho formal, em que reinventa sons, escolhe palavras precisas, corta certeiro o verso, além de reelaborar formas e temas da tradição, construção cuidadosa do poeta sensível que, formado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, dedica-se ao trabalho com os livros, na editora Intermeios.
Dividido nas partes Sempre, Antes, Durante, Depois, Além e Agora, o volume, já no grupo de abertura – Sempre –, ao falar de amor, anuncia o sofrimento como matéria de poesia. Seu poema inicial, Balada para a amarga Margot, invoca a musa contraditória e o pranto do sujeito lírico, constituindo-se como abertura da odisseia do outro e do eu.
A referência ao poema de François Villon, Balada da gorda Margot, retomando o poeta francês do século XV que perambula pela cidade a retratar a face desordenada de Paris, desvela o eu lírico de Torre Inversa como aquele que percorre as imagens da degradação amorosa, numa peregrinação contemporânea em busca do amor, sentimento nunca suficiente, já que ele é construído como um simulacro transitório a que não se pode fugir ou como uma teatralização do desejo carnal:
doem-me mesmo os testículos [...]/ é simplesmente a fisiologia/ exigindo a renovação da vida,/ espermatozoides sonhando óvulos/ yang e yin, + e -, x e y, eu e.
Assim, o trovador, num rebaixamento da figura da Idade Média, transforma-se em “troveiro”, a entoar solitário o canto do amor amargo, sem esquecer o “ridículo do idílio” e sem deixar de sofrer por causa da ausência do outro – “À tua porta cerrada/ trago o meu ‘Estou aqui, Ana’”. Além disso, o título do grupo – “Sempre” – revela a procura amorosa como a busca que motiva a viagem do eu lírico, numa atualização contemporânea da viagem de Odisseu.
Na segunda parte do livro, o eu lírico retoma a imagem frágil e difícil do início da vida, construindo, por meio do embate entre o tempo presente e o tempo passado, o grupo de poemas em que o sujeito, a refazer a viagem de Ulisses, procura compreender como era a vida, antes do começo do percurso, observando-a, agora, sob a lucidez do tempo maduro – “isso não via/ vejo hoje”. Assim, em Antes, o gesto tímido da figura materna, mulher do interior inserida no contexto patriarcal, define a imagem da “Jocasta” que, ambígua, é a mãe do pai do eu lírico, assim como dele mesmo. Além disso, nos versos do sujeito que percebe o leite derramado como a poesia da época da juventude, há a recapitulação de imagens antigas que se repetem na curva da estrada, como se estivessem sendo exibidas por um “projetor quebrado”.
Acompanhar essa retomada é perceber como a vida interiorana ligada à terra revela ao eu lírico a alteridade presente nos olhos dos porcos, numa consciência machadiana da própria existência: somos nós ou são os suínos, sacrificados sem culpa, que quase não temos olhos? No entanto, a volta do olhar ao espaço natal do Odisseu moderno não se faz sem conflitos, pois, se, para Konstantinos Kaváfis, Ítaca dá “a bela viagem”, possibilitando que se percorra o caminho – “Sem ela não te porias a caminho” –, em Torre inversa, o retorno não é possível, apesar de encenado, já que está a se voltar à "ex Ítaca", numa viagem ao nada, em que o tempo histórico dilui o mito, numa derrubada da cidade grega.
Na visita à ex-Ítaca, a consciência de que as “sempre vivas/ chagas.// florem”, numa perpetuação do sofrimento, cria para o próximo grupo de poemas a expectativa da permanência das dores, presentes tanto em Durante como no restante da viagem-livro, despertando, no leitor, o desejo talvez impossível de encontrar, nos versos, o lenitivo e obrigando-o, enquanto isso, a sustentar em sua sensibilidade, no lugar do alívio, o peso da dor. Se em Antes o eu revisita o tempo passado, em Durante, relembra a preparação da viagem. No entanto, já no poema de abertura do grupo, Farol, a expectativa da partida é permeada pela consciência do vazio, pois, ao olharem o horizonte a ser percorrido, os futuros argonautas com “esperança nenhuma” se deparam com o “nada” – “miramos apenas”.
Nesse grupo ainda se mantém o encontro do olhar experiente com a vida em seu início, capaz de prenunciar, na imagem dos colegiais, jovens como o personagem Tadzio, de Morte em Veneza, o encontro com a face do tempo e com o “abismo do medo”. Ali, “o homem sabe”, intransitivo e lúcido, as dores de ficar à margem e as dores da partida, assim como o rio sabe “a proximidade/ agastante do engaste/ opaco da pedra”, “o peixe sabe/ o revolteio rápido” e o seixo conhece “o embate seguro/ do ficar// à margem”, conhecimento de mundo que, nos versos, assume a sonoridade dos fonemas e o ritmo do corte.
Em Depois, numa tomada de consciência do que significa a velhice, o olhar do eu lírico detém-se no tempo em que, ultrapassada a juventude, pode-se reconhecer, no corpo, o peso do trabalho exaustivo executado por quem se nomeia “sísifo da silva” e ouvir, ao lado do ranger dos ossos, a música feita de desejos antigos, num ritmo que marca a coreografia da morte. Assim, o grupo apresenta o olhar perspicaz do eu, quando se volta para o momento em que não há mais a viagem, mas somente a percepção do “escoar d’águas”, vistas da margem, como em uma espécie de Sôbolos rios camoniano, em que passam imagens de reinos e de Medeias antigas.
Nessa parte, o eu lírico do poema Fusão, dirigindo-se ao leitor, desvela a conjugação difícil de duas faces, a saber, a que está mais envelhecida, capaz de perceber hoje olhares alheios que fogem ao seu desejo, num gesto de desdém, e a mesma face, quando jovem, que ostenta o desprezo pelos olhares mais velhos – “tu foste,/ belo que eras, objeto desejado, e,/ por sê-lo e sabê-lo, primavas também/ em desdenhar desejos”. A epígrafe do poema, remetendo ao texto de T. S. Eliot – “Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu” –, ressalta o encontro entre a juventude e a época da maturidade, numa junção sensual entre o desejante e o desejado. Assim, se o argonauta estava procurando algum tipo de totalidade, fica claro, em “Depois”, que esse objetivo pode ser atingido apenas quando a viagem cessar, já que a completude do ser é dada, no fim da vida, por meio da junção de Tadzio ao corpo de quem o deseja.
Na penúltima parte do livro – Além –, mais à frente na experiência do percurso, o eu torna-se capaz de ver e compreender a viagem-vida de forma ainda mais nítida, apesar de estar numa torre inversa, porque subterrânea. Nesse grupo, ele invoca deuses gregos e a tradição cristã, numa compreensão de si e do outro, e passa a narrar, como uma espécie de Odisseu, as dores da vida e a falta de sentido da existência – “narro o visto/ o horror (o homem)/ que pedi/ para não ver”. O poeta, que não se furta à visão da máquina do mundo sabe, como Actéon – punido pela volúpia dos cães, após ter visto a deusa Ártemis nua –, que compreender as dores da vida é ouvir “os dentes se unindo dentro da carne [...]”.
Assim, o eu lírico, nesse grupo de poemas, é o deus-homem nascido da “Teo agonia”, em que Ítacas, como água, são o choro que rompe o próprio ser. O deus humano, feito de privações, busca outros deuses, desejando tanto a turbação do sexo dada por Dioniso, como a presença de Apolo de “solar raízes”, numa apropriação de contrários que encenam a totalidade desejada. Numa simetria, essa união de opostos aparece por meio de recursos formais, nos versos, em que o “ah” inicial – “ah que venham as noves luas” –, no poema dedicado a Dioniso, se transforma em “oh”, no final do verso que abre o poema a Apolo – “em tudo perfeitas vós oh”.
Além disso, as “nove luas”, musas invocadas no primeiro poema, ressoam, por meio da aliteração, nas “musas nove símeis” do segundo. Assim, apesar de opostos, por carregarem as imagens da orgia e da razão, os poemas estão próximos, marcados ambos pelo ritmo solto que desemboca, no poema dioniso, no vocábulo “amo”, que aponta os desejos sensuais do eu – “de ninfas e meninos amo// naxos? Me levem a naxos!” –, e, em “apolo”, na palavra “imo” de quem quer também as “linhas retas e harmonia” – “delfos? me levem a delfos!”.
Ao lado dos deuses é desejada também Afrodite e seu “cheiro de verdor”, amante de Apolo e de Dioniso. A sobreposição de contrários se intensifica, com os poemas finais, em que o deus-homem se aproxima da tradição cristã, invertendo-a, já que se reconhece como o poeta-deus “ungido” que, no entanto, maldiz as “palavras santas”. Em Aceitação, poema que fecha essa parte, no que parece ser a retomada do preceito cristão, há, na verdade, o constatar, algo melancólico e sereno, das possibilidades dadas pela viagem-vida, tecida pela linha infinita de Ariadne que percorre o labirinto sem fim, em que é possível, ao menos, “o prazer em refazer o enigma/ do caminho, esquecer o mapa” e “ainda isso: elevar-se/ com as asas da análise/ e ver-se bicho em verso”, em que se mostra o fazer poético como o afastamento necessário para maior compreensão do próprio eu e do percurso, uma forma de prazer e de salvação.
Assim, na sobreposição da antiguidade clássica e da antiguidade bíblica, os poemas de Torre inversa situam, na permanência – Além –, a junção das duas colunas de que derivou a civilização ocidental, revendo-as e inserindo-as no contexto contemporâneo.
O grupo que fecha o livro, Agora, é marcado pela reflexão metalinguística, mas também é o lugar em que se fala da consciência de se estar à margem, do fim do amor, da morte e da dor da vida. Em para diane arbus, como a fotógrafa nova-iorquina, o eu lírico faz retratos dos despossuídos, cria imagens da morte e dá espaço aos marginais, vendo-se nos outros, ao construir, por meio da imagem alheia, espelhos do eu, entendendo, assim, a arte como o encontro de alteridades e uma forma de mistura de vida e de morte – “retratar a via/ é um tanto morrer”.
Ao lado dessas questões, está a dor da paixão que deixou de existir, mas que continua a doer, mesmo na ausência do amor, dor narrada por meio da construção de um diário, feito por meio da sobreposição de pequenos fragmentos que lembram haicais, em que se parte da falta do outro e se chega ao “tanto faz” final e à constatação de que “amor é nada”. Já o “bom vivant” às avessas, sente, como Flebas, a água “erosando as margens/ do interno sol dos ossos” e deseja ocasos, o cano de alguma arma e o doce do estampido. O eu marginal – o “ser [...] fora-do-mundo” –, cansado de sonhar, afirma a impossibilidade do futuro de quem, em exílio constante, é a estátua de sal bíblica, desde o abandono da casa, porque não deixa de carregar, nas retinas, as lembranças do que ficou. No entanto, persistem as imagens da possibilidade de se atingir o céu: as estrelas da boca e do beijo, recusadas, entretanto, assim como é negada a entrega ao beijo que salvaria o eu lírico da morte, sensual e irresistível, com “tetas bicos durinhos nas [suas] costas”.
Além disso, apesar de, diferente de Ulisses, o eu lírico ser “lotófogo”, não consegue, ainda no último grupo, se livrar da lembrança que “é [a sua] casa” e continua a retomar, no presente, a herança do passado, a Ítaca que, como a Itabira de Drummond, “dói como o coice”. Assim, a ferida que lateja sem cessar vive no presente, mostrando-se, por exemplo, no ato de cozinhar, que traz em si a memória da herança difícil deixada pelo pai, o sabor da comida da avó e a falta da mãe.
O poema “ainda fazendo abobrinha” reconstrói o texto “como quem pede perdão aos mortos”, colocado na parte “Depois”, acentuando, pela referência ao rapaz que prepara os alimentos, a presença do ausente – “faço abobrinha/ como quem pede perdão aos mortos:// sim, pai/ lembro-me de ti, sobre ondas/ trazendo à mesa os frutos do dia”, “sim, vó/ barco de borco sobre as ondas/ o verde odor dos teus pratos”, “sim, mãe/ águas secas da infância/ tristezas sobre as ondas da tua morte”. A inserção, no poema, da referência ao legume leva tristeza aos versos, talvez por carregar o sabor da horta do interior, o modo e preparo específico – “fios na panela/ água nunca” –, o cotidiano miúdo, que, no entanto, carrega muito valor, agora nas mãos do homem que quase profana a herança familiar, carregando, em si, ainda, a falta perene da mãe.
Se em além o eu lírico invocava diferentes deuses da antiguidade, em Agora, apenas Cronos sobrevive, deus mais próximo da vida mortal do homem. Se, antes, o eu lírico desejara Naxos e Delfos, agora quer Ítaca, o antigo povoado do Sol – “casa, me levem pra casa” –, mesmo sabendo não ser possível voltar ao tempo antigo. Assim, apesar de carregar, em si, a lembrança do tempo mítico dos grupos anteriores, o eu lírico, como Odisseu a carregar “a velha cicatriz anunciando chuva”, percorre águas, sabendo da possibilidade do naufrágio e da certeza da ausência-presença do lar, que busca, no entanto – “meu lar é onde não o há”.
A procura do herói é também a busca (ou a espera) do amor que, nos últimos poemas do grupo, passa a ser figurado por meio do encontro do eu com ele mesmo. Criando uma cantiga que lembra o tom melancólico do fado, com a música dos versos construída por meio de repetições de palavras e pelo refrão – “ai ai a carta que escrevi..!” –, o poema “a carta”, em que o eu espera a correspondência enviada por ele para ele mesmo, é dividido em três partes, a saber, a espera, o irromper do crepúsculo – “ave-maria// a boca da noite” – e o tempo do medo, em que estão a perda da flauta de Pã, o pânico e a imobilidade, em meio à viagem.
Assim, o poeta refaz o percurso de Ulisses, num estranhamento conseguido por meio de sua modificação, já que a Odisseia, origem do romance de aventura e do romance de amor, como lembra Adélia Bezerra de Meneses, ao ser retomada, apresenta Ítaca, não como o lugar do amor que não fenece, mas como o espaço em que o único encontro possível é do eu com ele mesmo, cumprindo, numa nova forma, a viagem épica que, para Adorno, é a metáfora do ser humano a procurar a constituição do próprio eu – “pudesse eu colher-te/ neste breve instante/ em que te adolesces!// [...] como um deus fender/ as dobras do tempo/ e no olimpo sujar-te/ de ambrosia e amor!”.
Assim, como vimos, a organização dos grupos forma uma linha narrativa cíclica, no livro, em que o Antes, o Durante, o Depois e o Além aparecem circundados pelo Sempre, grupo de abertura do livro, assim como pelo Agora, que o encerra. Se, no início, é tematizado o amor como sofrimento, no final, numa retomada do primeiro grupo, tem espaço a angústia do fim do amor, acompanhada pelo desejo de morte, única maneira de realização do encontro amoroso.
Além disso, a angústia de quem carrega, como cicatriz, suas várias faces, cansado da repetição da viagem e da perseguição dos sonhos, leva ao desejo do suicídio, tema também presente no último grupo – “não enfiarei a cabeça no forno”, “naufragar é preciso”. No entanto, o poema que fecha o livro oferece, no lugar do alívio para a dor, ao menos, a possibilidade de sua sublimação, por meio da arte. Ali, o eu lírico, apesar de consciente de ser espetáculo para o deleite alheio, como afirmara no poema palanque – “se eu quisesse, o que poderia/ eu dizer a vós, ávidos leitores?/ quereis ver expostas vergonhas?” –, assume-se como a própria poesia, já que, como estátua-stripper, revela no corpo, marcado pela dor de ser estrangeiro, o fazer poético – “michê nihil, animal todo/ meio-fio, no torto rito:/ dar-se a ver no ato nato/ do fazer-se verso, visto”.