A janela é um lugar bom para pensar na vida. Sei que é algo fora de moda, praticamente em desuso no mundo de hoje. Claro, a concorrência das imagens virtuais nas telas e celulares, tão atrativas e variadas, sepultou este hábito outrora tão comum.

Hoje a gente passa por um prédio e não vê ninguém nas janelas. Elas tiveram sua função rebaixada a meras aberturas para penetração de ar e luz. Parece que ficar à janela virou coisa de gente do interior. Mas também pode ser coisa de gente voltada para o seu próprio interior…

Eu ainda tenho um pouco deste hábito. Em pleno século XXI, de vez em quando passo um tempo na janela, olhando o mundo e deixando o pensamento pegar um pouco de ar e luz.

Da janela podemos vaguear o olhar pela natureza, observar uma árvore balançando suavemente ao sabor de um sopro invisível, ver uma pessoa passando sem notar que está sendo observada, ver um pássaro voando sabendo que está sendo observado.

É como fazer um passeio pelo cotidiano da vida não como um turista, mas apenas como espectador. Uma espécie de pausa contemplativa.

Confesso também ao leitor que às vezes eu abro a janela em busca de uma crônica. E foi em uma destas espiadas que eu vi a cena, ali pelas 5 da tarde na cidade do Porto, em Portugal. Da janela onde eu estava era possível ver um prédio residencial, cujo primeiro andar era de apartamentos tipo casa, onde a área térrea em frente é privativa e se transforma numa espécie de quintal cercado. A cerca, na maior parte das vezes, é revestida com um tipo de tela para proteger o “quintal” dos olhares alheios, pois afinal não adianta ser privativo se não tiver privacidade.

Bem em frente ao prédio havia um grande gramado, onde algumas árvores estavam de plantão aguardando visitas, prontas para serem apreciadas de perto e entregarem sombra fresca e aromas verdes.

Eu admirava o conjunto e observava detalhes. Passeava o olhar como um nômade, vendo tudo, mas sem me prender a nada. Apenas querendo vagabundear os pensamentos, deixá-los ociosos, sem foco nem atenção, impalpáveis como nuvens.

De repente uma jovem surgiu na portaria com um cãozinho pela coleira. Ela vestia uma calça jeans e uma blusa branca. Numa mão o indefectível celular, claro. Na outra, a coleira de um colérico cachorrinho. Ele ladrava tão alto que parecia uma caixa bluetooth de quatro pernas e um rabinho.

O latido me tirou do devaneio. A coleira esticada mostrava que ele queria ir numa direção, enquanto sua dona preferia outro rumo. Ela o conduziu, meio arrastado, para a entrada do tal gramado, tão aprazível naquela tarde de verão ensolarada.

Ao chegar aonde queria, sem sequer olhar o jardim à sua frente, ela ergueu a mão direita, colocou o celular na posição e se debruçou na pequena janela virtual. Para não ser incomodada, desengatou a coleira e deu liberdade ao animal.

O bichinho saiu como um foguete, latindo escandalosamente em direção à cerca de um dos apartamentos térreos. De onde estava, eu podia enxergar boa parte do quintal e vi que ali estava o alvo: um outro cachorro, bem maior que aquela barulhenta miniatura.

Ao ouvir o latido do desafeto se aproximar, o cão de dentro agitou-se, correu para a cerca e respondeu ao desafio com latidos mais grossos e poderosos. Acabaram por se encontrar, um de cada lado da cerca, ambos espumando de raiva e destilando um ódio mortal.

Não podiam se ver, mas cada um sabia que o outro estava ali, a dois dedos de distância, separados apenas pela cerca fina e opaca que os impedia de uma titânica luta corporal. Com a proximidade do inimigo, emitiam incessantes latidos como tiros de canhões.

A raiva incontida fez o pequenino disparar ao longo da cerca como se estivesse procurando um buraco para ali penetrar e devorar o inimigo. Se conseguisse provavelmente seria destruído, mas não sabia disso. O grande, do lado de dentro, acompanhava milimetricamente a corrida do anãozinho sonoro e o acossava no mesmo ritmo. Corriam tão juntos que pareciam estar em cima de uma mesma plataforma que deslizava velozmente ao longo da cerca.

Foram até a extremidade. Ali fizeram meia-volta, como atletas de nado sincronizado e dispararam novamente em sentido oposto. E assim foi por muitas e muitas vezes, para lá e para cá, sem esmorecer. Um ioiô canino.

O passar do tempo fazia a raiva aumentar. Os latidos pareciam mais esgoelados, a velocidade maior e a raiva mais visceral. Fiquei imaginando de onde vinha tamanha inimizade.

Havia raiva demais para ser uma brincadeira entre cães. Era muita espuma e dentes arreganhados. O que um havia feito ao outro para despertar tanta hostilidade? Uma tarde linda, um jardim para ser desfrutado e aquele animalzinho abandonava tudo por corridas coléricas contra um adversário que não podia ver e do qual estava protegido por uma abençoada cerca. Não podia atacar nem ser atacado, mas dedicava-se à inócua tarefa de exibir sua malquerença. É irracional…

Ao fim de alguns minutos, exaurido, o pequenino abandonou a luta infrutífera e foi se arrastando até a dona. Deitou-se a seus pés e ali ficou, arfando. Estava inerte e esgotado, olhando para o jardim não desfrutado. Saiu para um passeio, meteu-se voluntariamente numa guerra sem sentido e saiu derrotado.

A moça, indiferente aos acontecimentos, continuava absorvida pela janela virtual, vendo umas coisas, digitando outras. É possível que estivesse navegando em alguma rede social e talvez se digladiando contra algum adversário que não podia ver e do qual estava protegida por uma abençoada cerca…

Saíram para um passeio, ela e o cão. O jardim estava ali, mas disseram não.

Há coisas interessantes e úteis nas redes sociais, mas também vejo muita gente que alimenta uma raiva descabida, como aquele cãozinho. Há poucos dias, num grupo de literatura, uma pessoa pediu opinião sobre um livro que cogitava comprar. Me interessei em ver as opiniões, pois eu conhecia e apreciava a obra. O diálogo, se é que pode ser chamado assim, foi desta forma:

— Não consegui ler este livro até o fim.
— Por que?
— Não me lembro. Faz muito tempo.
— Ah, me ajudou bastante. Muito obrigado…
— Vai pro inferno!
— Leia algum livro sobre educação. Está precisando.

Abandonei a conversa. Se na literatura isto ocorre, quanto mais em temas polêmicos. São pessoas que gastam energia irracionalmente, sem proveito, sem utilidade, sem crescimento pessoal, engajando-se em discussões inúteis e descabidas. Guerras sem vencedores. Abrem mão de prazeres e oportunidades de relacionamentos, trocando o valioso pelo odioso. É irracional… Quando me deparo com este tipo de coisa, imediatamente deixo a janela virtual e vou para a janela real, mais amena e humana.

É preferível desfrutar de um jardim numa tarde linda do que participar de interações onde prevalecem palavras duras e ataques pessoais. É mais sábio direcionar a raiva para os problemas e não para as pessoas.

Fico com mais uma das brilhantes frases de Churchill:

#Um homem é tão grande quanto as coisas que o deixam com raiva.