O verão de 2024 foi atarefado para os adeptos de desporto no geral, e de futebol em particular. De 4 em 4 anos, os fãs do desporto-rei são presentados com uma sequência de eventos com potencial para os pregar ao sofá durante um mês inteiro: o Europeu de futebol e a Copa América, seguidos dos Jogos Olímpicos.

Todos estes torneios foram vividos com intensidade e paixão, imagem de marca do que quer que seja que esteja ligado ao futebol. Foram muitas as histórias e narrativas (para além dos jogos) que foram aquecendo o público e enchendo páginas de jornais.

Uma dessas histórias teve origem num debate interminável (e de difícil resolução), lançado, desta vez, por Lionel Scaloni, selecionador da Argentina. A situação prende-se com a diferença entre o Europeu de futebol e a Copa América. Mas antes das declarações, alguns precedentes:

Os precedentes

Em 2022, outra versão desta discussão. A estrela francesa Kylian Mbappe afirmou que “a Argentina não jogou jogos de grande qualidade para chegar ao Mundial de futebol”. Disse ainda que “o futebol sul-americano não é tão avançado como o europeu. Por isso é que, se olharmos para os últimos campeões do mundo, são sempre equipas europeias”.

Na altura, Lautaro Martínez, argentino do Inter de Milão, respondeu ao francês: “vi o que disse, mas a Argentina e o Brasil têm jogadores de grande qualidade e talento. O Brasil, tal como nós, tem grande parte dos seus jogadores a jogar na Europa. Achei um comentário injusto”. Outro Martínez, Emiliano, adicionou aos comentários: “Bolívia em La Paz, Equador com 30 graus, Colômbia onde nem conseguimos respirar… na Europa jogam sempre em condições perfeitas e não fazem ideia do que é a América do Sul.”.

A melhor resposta a Mbappe foi dada em campo pelos argentinos: num jogo de loucos, vitória na final do mundial de 2022 contra a seleção francesa. A primeira vitória de uma equipa não europeia desde que o Brasil venceu em 2002.

De volta a 2024

Como temos em mãos um debate que não termina, onde os dois lados tentam gritar cada vez mais alto (às vezes mais à procura de ter razão do que de chegar a um consenso), o tema voltou a ressurgir em 2024. Foi aqui que Scaloni ganhou papel central na trama:

Não penso que seja mais difícil ganhar uma competição ou outra. Há equipas importantes que avançaram para as meias-finais do Europeu – equipas que enfrentamos no Mundial, e correu-nos bem, mas isso também não quer dizer que podíamos chegar ao Europeu e vencê-lo. Ou talvez sim. Eu penso que o nível é muito uniforme. Gostava de ver uma equipa europeia ser convidada para a Copa América, e vice-versa. Mas assim tornar-se-ia num Mundial, certo? Por isso, no fim, a dificuldade é a mesma. Eu não acho que haja grande diferença, mas isto são só opiniões.

As palavras não são incendiárias por si só. São inúmeras as personalidades que fizeram declarações parecidas, seja que lado defendam. Mas podem ser um ponto de partida interessante para uma reflexão que vai para além do futebol: a qualidade das duas competições é, de facto, semelhante? As equipas sul-americanas conseguiriam competir (ou ganhar) o Europeu? E vice-versa?

Tentamos, a partir daqui, fazer uma análise a alguns dados das edições de 2024 do Europeu e da Copa América, na procura de algumas respostas para as muitas perguntas à volta deste tema tão apaixonante.

Fazer a pergunta certa

Para chegar à resposta certa (se existir), é importante fazer a pergunta certa.

Se o debate fosse “conseguiria uma equipa da América do Sul ganhar o europeu de futebol”, a resposta seria fácil e o debate de simples resolução — porque a resposta seria sim. O futebol são 11 contra 11, e nem sempre no fim ganha a Alemanha.

Será, então, óbvio afirmar que a Argentina e o Brasil seriam candidatos crónicos a ganhar o europeu de futebol (e qualquer competição em que participem). Mas se a questão fosse “ganhar a competição”, muitas outras equipas o poderiam fazer — é a beleza do futebol, no início do jogo são sempre 11 contra 11, 50% para cada lado.

É interessante lembrar que nem sempre a equipa mais forte ganha: a Grécia ganhou em 2004, Portugal ganhou em 2016 — nenhuma dessas equipas estava no lote dos favoritos das respetivas competições. A Itália venceu em 2020 e não se apurou para o Mundial de 2022, ganho pela Argentina. Torna-se impossível dizer que seleções como o Chile, a Colômbia ou o Uruguai não poderiam ter os seus momentos de glória num Europeu de futebol.

A pergunta a que procuramos resposta não pode ser, então, se uma equipa de um continente conseguiria vencer a competição de outro continente. Não seria futebol se a resposta não fosse sim.

Procuramos perceber qual a competição mais forte — o torneio mais competitivo e mais difícil de vencer de um ponto de vista futebolístico. A análise, como todas as que se podem fazer, é relativa, e muito dificilmente se chegará a uma resposta de sim ou não. Mas esperamos ajudar a ilustrar o debate com dados importantes para uma comparação.

Os dados

É de salientar que não só é difícil decidir que dados considerar para perceber a competitividade de um torneio (e encontrá-los), como não há nenhuma autoridade capaz de definir quais são de facto os dados certos para esta análise.

Começar por alguns dados básicos, tendo sempre em conta que o Europeu tem mais jogos e mais equipas a participar:

Golos por jogo

  • Europeu — 2,29
  • Copa América — 2,19

Passes completos por jogo:

  • Europeu — 412,17
  • Copa América - 306,78

Na competição europeia marcaram-se mais golos e fizeram-se mais passes por jogo. Se a diferença de golos é curta, há uma diferença de mais de 100 passes completos por jogo, com vantagem para o torneio europeu. Tudo no futebol é contextual, mas uma diferença tão grande de passes completos por jogo (que resulta, quiçá, em mais golos) normalmente denuncia uma qualidade superior de jogo — ou, no mínimo, uma maior procura do jogo de passe ao invés da aposta na bola longa.

Faltas por jogo

  • Europeu — 22,3
  • Copa America — 26,43

Cartões amarelos/vermelhos por jogo

  • Europeu — 4,7/0,12
  • Copa America — 3,75/0,28

O número de faltas foi superior na Copa América, com uma diferença de 4 faltas por jogo — menos faltas normalmente resultam em mais jogo corrido, com menos paragens. Ao invés da tendência, no Europeu houve mais cartões amarelos por jogo, em menos faltas — que pode significar que foram feitas menos faltas “desnecessárias” no Europeu, mas também que o critério de arbitragem era mais apertado. Nos cartões vermelhos, a média foi superior na Copa América.

Os dados apresentados até agora podem resultar em reflexões interessantes sobre o futebol praticado, mas não tornam ainda percetível a competitividade entre as competições. Procuramos então fazê-lo com os seguintes dados:

Ranking FIFA — equipas no Top 50

  • Europeu — 87,5%
  • Copa América — 68,75%

Ranking FIFA (Não) Top 30

  • Europeu — 62,5%
  • Copa América — 43,75%

O Ranking FIFA vale o que vale, mas é o único ranking de futebol mundial de seleções. Olhando para os números apresentados, a qualidade transversal no Europeu de futebol parece superior. Das equipas qualificadas para a fase final do Europeu, 87,5% estão no top 50 do Ranking FIFA, e 62,5% estão no top 30. Em comparação, a Copa América contou com 68,75% das equipas apuradas para a competição no top 50 do ranking, e apenas 43,75% no top 30.

Jogadores nas 5 maiores ligas europeias

  • Europeu — 357/624 — 57,21%
  • Copa América — 103/416 — 24,76%

Não é um exagero escrever que as ligas Inglesa, Alemã, Espanhola, Italiana e Francesa são as ligas mais fortes da europa e do mundo. Tal como Lautaro Martínez apontou, o facto de os jogadores jogarem nestas ligas mitiga as diferenças contextuais (e monetárias) entre seleções. Se um jogador estiver na Premier League, estará habituado ao futebol mais competitivo do mundo, mesmo que a sua federação tenha menos recursos. Por isso se torna tão importante perceber onde jogam os jogadores que compõe as competições continentais — afinal, o clube é onde os jogadores passam a maior parte do seu tempo.

Os números vão ao encontro das indicações que eram avançadas por outros dados. 57,21% dos jogadores que alinharam no Europeu 2024 fazem parte de equipas das 5 grandes ligas de futebol. Na Copa América, o número é menos de metade — apenas 24,76% dos jogadores estão na elite do futebol de clubes.

É importante contextualizar este dado: pode ser, dependendo das circunstâncias, mais fácil para jogadores europeus jogar na europa, e em consequência, nas maiores ligas europeias. Por outro lado, também é normal que equipas mais abaixo no ranking FIFA não tenham a qualidade suficiente para meter vários jogadores nas principais ligas de clubes.

A este facto podemos adicionar outro dado que confirma esta tendência: o valor total dos planteis presentes no Europeu 2024 é de 11,4 biliões de euros. Na Copa América, o valor é de 4,2 biliões de euros. Há muitos fatores explicativos da diferença, mas a conclusão só pode ser uma: há mais qualidade no Europeu, e essa qualidade também está espalhada por mais equipas — pode argumentar-se que isso torna um torneio mais competitivo que o outro.

Adeptos por jogo

  • Europeu — 52,574
  • Copa America — 49,121

Prize money

  • Europeu — 331M€ (mínimo 9M)
  • Copa América — 72M€ (minino 2M)

Os últimos dados para análise servem também como explicação do contexto. Mais adeptos (e mais dinheiro) pode significar melhor espetáculo, mas não necessariamente maior competitividade. No entanto, é importante destacar estas diferenças, que podem ajudar a explicar as diferenças na competitividade.

O prize Money das competições conta uma história importante: 331 milhões de euros distribuídos no Europeu, e 72 milhões na Copa América. O prémio de participação no Europeu são 9 milhões de euros, e na Copa América são 2 milhões. Esta disparidade monetária, que também denuncia a diferença de recursos entre as federações de futebol europeias e sul americanas, é um ótimo auxiliar na explicação do porquê de o nível médio na Europa ser mais forte do que na América do Sul.

Conclusões

Voltando às declarações de Lionel Scaloni, podemos concluir que o selecionar argentino estava certo e errado ao mesmo tempo: se, por um lado, uma equipa sul americana pode, decididamente, vencer o Europeu de futebol, também é verdade que o nível médio parece mais alto no torneio europeu, com os índices de competitividade a parecerem mais altos na transversalidade do Europeu, em comparação com a Copa América.

As diferenças monetárias e de recursos, bem como a maior proximidade com as maiores ligas do mundo são fatores explicativos das diferenças que se verificam entre as duas competições.

Por fim, ressalvar que estas considerações não são absolutas, em virtude da dificuldade de comparar duas competições que, apesar de serem palco do mesmo desporto, são diferentes na sua génese.