Temos de mudar o mundo, reinterpretando-o constantemente; tal como a própria mudança, a reinterpretação do mundo é um esforço coletivo... A imaginação do fim (do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado ) está a ser corrompida pelo fim da imaginação.

(Boaventura de Sousa Santos, 2018, caps. viii, x).

وأنت تفكر بالآخرين البعيدين، فكِّر بنفسك
قُلْ: ليتني شمعةُ في الظلام

[E quando pensares nos outros que estão longe, pensa em ti Diz: quem me dera ser uma vela na escuridão.]

(Mahmoud Darwish, 2005)

As décadas de trabalho prolífico e influente de Boaventura de Sousa Santos dificilmente podem ser contabilizadas num pequeno ensaio. Ativista, intelectual, poeta, académico, o Professor de Sousa Santos é Professor Emérito de Sociologia da Universidade de Coimbra, Portugal e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin, Madison, bem como Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Conhecido internacionalmente e frequentemente citado, Santos tem publicado amplamente sobre a sociologia do direito, a globalização, a democracia participativa, o Estado e a reforma, a epistemologia, os movimentos sociais, o Fórum Social Mundial e o ensino superior. Os muitos livros de Santos, bem como os que escreveu em coautoria com os seus colegas, e os seus ainda mais numerosos artigos e ensaios foram traduzidos para espanhol, inglês, italiano, francês, alemão, chinês, dinamarquês, romeno, polaco, árabe, coreano e grego. As suas realizações incluem também artigos e ensaios regulares em jornais, entrevistas, vídeos, livros de poesia e até letras de rap.

Boaventura Santos recebeu uma longa lista de prémios de prestígio, incluindo, mais recentemente, o prémio Frantz Fanon Lifetime Achievement Award da Caribbean Philosophical Association em 2022. Ao conceder esta honra, a Associação Filosófica das Caraíbas caracterizou a pessoa e a obra de Boaventura Santos.

Intelectual orgulhoso das suas origens humildes entre o campesinato português e consciente do que está envolvido nas lutas contra o fascismo, o Professor de Sousa Santos dedicou a sua vida à luta contra todas as formas de opressão, lutando ao mesmo tempo pela afirmação de uma vida vivível. O seu trabalho sobre as epistemologias do Sul está diretamente relacionado com o projeto da Associação Filosófica das Caraíbas de deslocar a geografia da razão e com o apelo de Fanon à construção de novos conceitos na luta por um mundo melhor.

Por isso, não, um pequeno ensaio pouco pode fazer justiça a essa longa, diversificada e ilustre carreira. Em vez disso, centrar-me-ei em três formulações críticas centrais de Santos que mais se referem às exigências urgentes dos nossos dias. As que mais se referem à reinterpretação do mundo, ao mesmo tempo em que se esforçam para mudá-lo. As que falam do trabalho de atender às histórias, práticas, entendimentos dos outros e imaginar o contrário. Que são uma história do esforço de pensar para além de um eu para outros colectivos (Darwish' فكِّر بغيركَ / "Think of Others [those who are not you]" que, curiosamente, nas linhas finais do seu poema se torna o mais familiar تفكر بالآخرين*). Isso aponta para aquilo a que poderíamos chamar um "esforço coletivo" de "ver, ouvir e fazer participativos".

Os três conceitos críticos centrais da obra de Boaventura Santos, que são aqui focados, são os das "epistemologias do sul", da "linha abissal" e da "sociologia das ausências". Estas três, profundamente entrelaçadas, têm ressoado muito para além das fronteiras do seu Portugal natal ou, de facto, da Europa. São abordados em trabalhos na Índia, na América Latina, na África do Sul, no Senegal e em Moçambique, noutras partes de África, na Ásia Ocidental. A sua crítica cuidadosa e pormenorizada das opressões interdependentes do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado e o facto de apontar para as resistências a essas opressões, com as suas formas alternativas de conhecer, explicar e mudar o mundo, são linhas de força que atravessam estas três formulações, como, aliás, toda a sua obra.

O conceito de "epistemologias do Sul" que informa grande parte do trabalho de Santos não é um simples indicador geográfico de divisões e oposições, nem uma simples construção dualista. Pelo contrário, tal como Santos o formulou num discurso proferido imediatamente antes do Fórum Social Mundial de 2011, em Dakar, Senegal, as epistemologias do Sul assinalam um Sul:

que não é geográfico, mas metafórico: o Sul anti-imperialista. É a metáfora do sofrimento sistemático produzido pelo capitalismo e pelo colonialismo, bem como por outras formas que se apoiaram neles, como o patriarcado. É também o Sul que existe no Norte, aquilo a que costumávamos chamar o terceiro mundo interior ou o quarto mundo: os grupos oprimidos e marginalizados da Europa e da América do Norte. Há também um norte global no Sul; são as elites locais que beneficiam do capitalismo global.

(Boaventura de Sousa Santos, 2010, p. 16).

A especificação das "epistemologias do Sul" também não é um sinal para a ignorância dos esforços históricos — se bem que, segundo Santos, largamente esgotados — do Norte para teorizar e decretar uma mudança não só liberal-burguesa, mas também revolucionária. Essa mudança, designada universal, tinha dois fins potenciais no Norte — um regulador, o outro emancipatório. Mas era uma visão e uma prática sempre locais, localizadas e imperiais.

para as epistemologias do Sul, o universalismo europeu é um particularismo que, através de formas de poder, muitas vezes militares, conseguiu transformar todas as outras culturas em particulares.

(Boaventura de Sousa Santos, 2010, p. 20).

nas condições do sistema-mundo capitalista ocidental... Aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de um dado localismo.

(Boaventura de Sousa Santos, 2015, p. 89, sublinhado nosso).

A atenção às epistemologias do Sul nomeia o reconhecimento deliberado e cuidadoso das formas pelas quais as alternativas já existentes podem ser vistas e ouvidas, já estão em diálogo — incluindo com a Europa ou o Norte. Oferecem um antídoto formidável para as ignorâncias e os desconhecimentos do nosso momento e dos nossos locais.

Duas ideias básicas sustentam as epistemologias do Sul: a compreensão do mundo excede de longe a compreensão ocidental do mundo; a experiência cognitiva do mundo é extremamente diversificada e o monopólio do conhecimento rigoroso concedido à ciência moderna implicou um epistemicídio maciço (a destruição de saberes rivais considerados não científicos) que agora exige reparação. Consequentemente, não há justiça social global sem justiça cognitiva global.

(Boaventura de Sousa Santos, 2023, p. 114).

As bases intelectuais e políticas do conceito de epistemologias do Sul nascem do trabalho inicial de Santos nas favelas do Rio de Janeiro na década de 1970. E, embora não estejam em primeiro plano, estão presentes no seu trabalho posterior sobre a lei, o Estado e um "novo senso comum" (1995). Aquilo a que Santos veio a chamar "epistemologias do Sul" nos primeiros anos deste século surgiu, segundo o próprio, apesar de um profundo ceticismo anterior sobre o papel do direito e do Estado.

O seu reconhecimento das possibilidades — não, das alternativas já existentes — de ver, viver e pensar de outra forma alterou-se com o desenrolar do Fórum Social Mundial (no qual Santos foi uma figura central), tal como se alterou com o seu trabalho na Europa, mas também no Brasil, na Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador. À medida que Santos escutava, observava e se envolvia com outras formas de conhecer, compreender e atuar em relação aos seres humanos e a outros seres no mundo, à medida que escrevia e co-escrevia com outros uma série de livros e artigos, elaborava e se envolvia cada vez mais com inclusão e cuidado com as epistemologias do Sul. O seu trabalho pode ser visto como uma espécie de performance política e intelectual de envolvimento com essas epistemologias. Tal como Santos o articula no seu recente Law and the Epistemologies of the South.

As epistemologias do Sul pretendem mostrar que, ao não reconhecer a validade de outros tipos de conhecimento para além dos produzidos pela ciência moderna, o critério dominante de conhecimento válido na modernidade ocidental tem sido responsável por um epistemicídio maciço, ou seja, pela destruição de uma imensa variedade de formas de conhecimento que prevalecem sobretudo do outro lado da linha abissal, nas sociedades e sociabilidades coloniais. Essa destruição desempoderou essas sociedades, tornando-as incapazes de representar o mundo como seu, nos seus próprios termos, e, portanto, de considerar que o mundo podia ser mudado pelo seu próprio poder e para os seus próprios objectivos. Nesta situação, não é possível promover a justiça social sem promover a justiça entre diferentes tipos de conhecimento.

(Boaventura de Sousa Santos, 2023, p. 96).

A atenção à rica capacidade das epistemologias do Sul é simultaneamente o reconhecimento daquilo a que Santos chama a divisão abissal, ou as linhas abissais que marcam essa divisão. Trata-se de

a divisão radical entre formas de sociabilidade metropolitana e formas de sociabilidade colonial que tem caracterizado o mundo moderno ocidental desde o século XVI. Esta divisão cria dois mundos de dominação, o mundo metropolitano e o mundo colonial, que se apresentam como incomensuráveis.

(Boaventura de Sousa Santos, 2023, p. 98-99)

Assinala a designação imperial da separação irrevogável e inexoravelmente hierárquica entre as sociedades metropolitanas e as sociedades das colónias, criando as categorias do humano, do menos que humano, do não-humano. Na sequência desta divisão, o que se passa do lado metropolitano dessa linha abissal não é concebível para o Norte como se passasse do lado colonial. Não pode haver um diálogo ou um intercâmbio igualitário através dessa linha.

Esta divisão era tal que as realidades e práticas existentes do outro lado da linha, ou seja, nas colónias, não podiam desafiar a universalidade das teorias e práticas em vigor no lado metropolitano da linha. Como tal, foram tornadas invisíveis.

(If God Were a Human Rights Activist, 2015, p. 2).

Reconhecer, ver, o trabalho das linhas abissais — porque são plurais e não singulares — é não ver ou desaprender o que foi proposto como singularmente universal. No entanto, a compreensão da linha abissal inclui a proposta de que, por muito grande que seja essa divisão abissal, ela pode ser interrompida, escalada, dobrada sobre si mesma, enrugada e atravessada. (Grande parte do trabalho de Santos nos últimos anos incide precisamente sobre o pós-bissal).

Da atenção ao trabalho destrutivo da linha abissal emerge uma "sociologia das ausências". Esta é uma sociologia que

será capaz de elucidar os limites da representação em ação em cada situação. Na primeira situação, em que as alternativas não ocorreram, estamos perante silêncios e aspirações impronunciáveis; na segunda situação, em que as alternativas ocorreram, estamos perante silenciamentos, epistemicídios e campanhas de arrasamento.

(Boaventura de Sousa Santos, 2014, p. 244).

(A esta última lista, poder-se-ia acrescentar o que mais recentemente se designa por "cultura do cancelamento" — com todas as contradições desse conceito e dessa prática).

A sociologia das ausências pode, pois, ser caracterizada como estando atenta ao que não ocorreu / não pôde ocorrer, ao que não foi ou não pôde ser dito ou feito. Atende também ao silenciamento do que foi dito, à falta de prestígio do que foi entendido e pensado, ao reenquadramento violento do que ocorreu. Esta proposta de atenção às "ausências" e aos "silêncios" não é efémera nem poética — embora tenha a sua própria poesis. As ausências e os silêncios "falam", na linguagem dos corpos, nas lacunas dos textos, nas histórias e práticas actuais que se reúnem em torno de lugares e práticas específicas. Se ao menos os virmos e ouvirmos.

Santos resume em um livro recente, mas, penso eu, uma vida inteira de trabalho sobre as epistemologias do Sul.

O longo percurso intelectual e científico narrado neste livro reflecte o impacto destes vastos processos em curso e procura extrair deles uma renovada energia crítica e construtiva.

(Boaventura de Sousa Santos, 2023, p. 673).

E aconselha-o numa obra anterior,

quem luta contra a dominação não pode contar com a luz ao fundo do túnel. Têm de levar consigo uma luz portátil, uma luz que, por mais trémula ou fraca que seja, fornece luz suficiente para reconhecer o caminho como seu e para evitar desastres fatais. É este o tipo de luz que as epistemologias do Sul se propõem gerar.

(Boaventura de Sousa Santos, 2018, cap. ix).

Dizer: quem me dera ser uma vela na escuridão.

(Darwish).