Como seres humanos, necessitamos de uma narrativa, de sermos emoldurados por um qualquer tipo de consciência que insista numa existência com significado, significado esse que requer um contexto, moral ou outro, aquilo que poderemos entender como narrativa.

No nosso quotidiano construímos narrativas com o desejo de nos distinguirmos da mole humana e da rotina. O quotidiano, para grande parte das pessoas, é banal. O fetiche rompe com essa banalidade tornando-se no elo de ligação com uma realidade compatível com as suas vidas. Analisar até que ponto a saturação da imagem fetiche não poderá, ela própria constituir-se numa banalidade é o propósito deste texto.

O sentido original da palavra fetiche podemos encontrá-lo no latim do facere (fazer, construir, fabricar um artefacto), e encontrá-lo também, a partir do século XV, na palavra feitiço, em referência à veneração africana por amuletos e ídolos religiosos, tomando as formas de fetisso em italiano, fetish em inglês e fetiche em francês.

Para Marx, o fetiche revelava-se na mercadoria:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho (…) os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

(Marx. 2013, p.204-206)

E para Freud, a concepção de fetiche encontrava eco na sua relação com o terror da privação:

O fetiche está relacionado com a morte através dos termos castração e medo, para a moldura, em termos da vista, do relance ou do olhar.

Parafraseando Christian Metz, esta concepção freudiana do fetiche pode englobar-se em duas correntes de significados: a metonímia aludindo ao lugar contíguo da perda onde ficámos e à metáfora, através do olhar emoldurado pela deslocação desse mesmo olhar em direção à ausência/presença do objecto através da substituição, olhando para um objecto por meio de outro. Já aqui referimos que a banalidade pode ser uma marca comum do quotidiano da generalidade das pessoas. Entre outros temas, a fotografia fetiche pode, exactamente, revelar-se como um corte nesse quotidiano banal.

Sendo uma fotografia com um realismo construído, encenado ou uma fotografia de um momento fetiche real, atrairá a atenção, algo de novo, algo de choque em torno dos objectos, da dimensão fálica ou do erotismo implícito constituindo um difícil equilíbrio da fotografia entre tornar-se obra de arte ou, simplesmente, deixar-se tornar sensata, banal, vulgar.

Olhares, identidade e rupturas

A identidade nasce, também, para além da dimensão e da ideia criada na nossa mente, da nossa relação social, da relação, enquanto indivíduos, que temos com o outro, ou seja, uma identidade relacional que serve para pensar as relações com o mundo exterior. Uma identidade dependente da noção de lugar.

O fim da modernidade coincidiu com a chegada da sociedade de comunicação, cujo papel determinante dos mass media, que transformou e caracterizou a nossa sociedade não como uma sociedade mais transparente, mais consciente de si, mais iluminada, mas como uma sociedade mais complexa, caótica até, trouxe, apesar disso, um caos relativo onde residirá, precisamente, a esperança e a emancipação. Uma sociedade ocupada com a imagem e a aparência, onde a fotografia resgata a memória e procura a verdade.

A fotografia, passível de ser discutida, a um tempo, como dispositivo para documentar uma performance, uma estratégia ou um acontecimento, e a outro, como obra de arte elegível em si mesma, modo prático de fixar a observação e também o meio pelo qual entra em vigor esse jogo entre registos visuais, não ficaria imune à análise de Laura Mulvey, cujas referências predominantes, a psicanálise e o feminismo, em leitura combinada com o marxismo, entraria numa profunda crítica da imagem produzida no contexto do cinema hollywoodiano, como produto da predominância do olhar masculino, ao qual corresponderia a imagem da mulher como objecto passivo do olhar.

Neste contexto, socorrendo-se de conceitos freudianos como voyeurismo, complexo de castração e fetichismo, Laura Mulvey pretenderia tornar visíveis os mecanismos inconscientes da relação entre imagem e olhar denunciando o carácter fetichista e ilusório da relação olhar/imagem, propondo uma ruptura e destruição do prazer provocado por esse tipo de relação. Será interessante, por isso, no âmbito deste texto, analisar o trabalho de dois profissionais da fotografia fetiche para podermos estabelecer paralelismos e rupturas com as teses defendidas.

Para Dommenique Luxor, dominatrix e performer e Fabio Stachi, fotógrafo, o seu trabalho consiste em jogar com esse carácter naturalmente fetichista da fotografia, isto é, com a ambivalência do olhar, do modelo, do objecto, da indumentária, criando estratégias e eventos para a câmara, ultrapassando os limites do que é visualmente crível, numa atitude sedimentada na experiência e numa modernidade cujo ponto de vista da sensibilidade e da subjectividade que considera, que tudo o que há no mundo real tem potencial para ser fotografado com dramaticidade.

Assim, para Fabio Stachi a fotografia fetiche tem o papel de construir e expor realidades alternativas, aparecendo ocasionalmente, na interpretação de alguma ideia que surgiu, para quem a ambiguidade do olhar, o prazer, a ruptura e a convenção são o fruto de uma visão do mundo de forma particular assente em três pontos de sustentação: obscuridade, sentimento e estranheza.

Para Dommenique Luxor a fotografia é uma questão de controlo do fotógrafo podendo ser analisada na sua faceta comercial e performática condicionada pelo referencial que a publicidade estabelece como base, sendo o Mercado, à priori, quem detém o domínio e o condicionamento dos signos, sendo um acto criado com o propósito expresso de ser fotografado, já no caso da faceta performática a única materialidade que surge da relação entre modelo e fotógrafo, é a fotografia sem certezas, sobre o controle realizado sobre o olhar do espectador final:

Nas minhas fotografias existe um elemento importante: quem clica, é o fotógrafo. Como divido em dois termos — as fotografias comerciais e as performáticas — no primeiro caso a relação de forças estabelecida sempre é condicionada pelo conjunto referencial que a publicidade estabelece como base, pois a foto tem que fazer sentido para um conjunto maior de pessoas e atingir um grande público, de pouca complexidade estética e que consome fotografia de fetiche. (…) no final das contas, nesse estilo de foto comercial, quem detém a dominação e condicionamento dos signos, a priori, é o Mercado. Já no caso da foto performática o jogo estratégico se dá entre mim e o fotógrafo. (…) quem vê uma foto tem a tendência automática de apagar a vontade do modelo e seu protagonismo, reforçado pela insistência cultural de que a foto é posse do fotógrafo, o fotógrafo, pois detentor do meio de produção, é o dominador da situação.

Ora é precisamente este conceito de fotografia fetiche que entra em ruptura com a tese de Laura Mulvey para quem, como ela, propõe a destruição desse mecanismo fetichista e dessa forma de prazer e a produção de uma nova linguagem do desejo, sob pena de colocar a mulher numa posição desvalorizada face ao olhar masculino que, por si só, representa uma posição, e de poder levar ao aprisionamento da fotografia e do cinema pela moda.

Importa, portanto, tentar descortinar o que é isso da verdade fotográfica para tentar perceber de que modo a fotografia se tornou ou se pode tornar, ela própria um fetiche, se o fetichismo reside apenas no olhar, se a composição fotográfica exclusivamente dedicada ao tema fetiche não passará de uma composição sem essa mesma verdade. Temas constantes numa sociedade imersa na imagem, assolada por um constante fluxo de representações entrelaçados numa rede de signos, que nos afastam cada vez mais de um suposto acesso directo ao real, assente na ambiguidade intrínseca da fotografia, na sua simultaneidade de presença e ausência, vida e morte, que se produz ou se tira com o desejo de controlar a passagem do tempo e negar a inevitabilidade dessa mesma morte, uma vez que ela sobrevive muitos anos depois, ao sujeito representado.

Uma verdade fotográfica patente no objecto fotografado quando representa um momento histórico, o assassinato do arquiduque da Áustria-Hungria, por exemplo, que despoletou a primeira guerra mundial, um objecto com a capacidade de manter presente os símbolos e os referentes que existiram e que a um mesmo tempo, já não existem, representando a sua ausência a sua privação, característica que partilha com o fetiche.

Associado à sua materialidade e tangibilidade, este paradoxo capacita a fotografia a tornar-se ela própria um objecto fetiche, objecto de ligação entre realidade e fantasia; tangível e intangível. A fotografia é a um mesmo tempo, matéria e imagem; um objecto capaz de interacção social entre ela, e de ser objecto mágico e fetiche fazendo uso da sua ambiguidade existencial de poder estar presente nos próprios signos que indicam a sua ausência. Ambiguidade essa, visível em fotografias de pessoas, sítios distantes ou fotografias do passado, as típicas fotografias de família, que se guardam em álbuns, caixas, no bolso ou na carteira podendo ser usadas como talismã, permitindo assim o acesso a outra realidade.

Percebemos que, o que lhe permite ser usada como talismã é o facto de ser um objecto constituído por matéria. Assim, na era da indústria cultural, da massificação e homogeneização do gosto e da imagem, os fenómenos culturais fizeram recair uma série de imaginários que se comportam como fetiches em modo mercadoria. O carácter da fotografia/artefacto viria a acentuar-se mudando o paradigma do penso, logo existo, para um sou visto, logo existo.

Assim se explica também que a massificação e a passividade do espectador de cinema ou o fruidor da imagem e da obra como fórmula, se tenham tornado característica do nosso tempo, gerando um conflito entre ser parceiro numa uniformização e o desejo de ser diferente.

A indústria cultural massificou o espectador através de obras-cliché com o mesmo sentido estético, o mesmo sentido comum, por seu lado, a passividade do espectador aprimorou-lhe o gosto por obras de fácil digestão, formas estéticas de fácil consumo reduzindo-lhe a estética à sua expressão mais juvenil do desejo e do prazer.

As condições industriais de produção em série para o entretenimento do público-consumidor geraram um objecto artístico, garantia do êxito da obra como objecto de produção industrial, ao nível da imagem, quer na sua vertente cinematográfica, quer na sua vertente fotográfica gerando, por sua vez, uma mercadoria, e um mecanismo ideológico de sedução que, através das novas técnicas, criou ferramentas de unificação das massas em função do seu desejo.

Assim, a fotografia tornou-se objecto de especulação equilibrando-se entre a tal representação do real, como documento e meio de alimentar e provocar o desejo. Fruto de toda esta transformação a moda não deixou passar em claro a possibilidade de aprisionar a fotografia com o intuito de aprisionar o espectador através do seu artifício do olhar fetichista.

A moda, por exemplo, apropriou-se desses mecanismos e popularizou o olhar fetichista sobre a imagem num fetiche. Transformou a fotografia, a imagem, o consumidor, através de uma óptica psicanalítica, jogando com a nossa obsessão pelos objectos inanimados que nos causam desejo ou prazer sexual popularizando acessórios, vestuário e poses.

A moda soube bem definir e associar o fetiche ligado ao simbólico, à fantasia e ao imaginário, não sendo de estranhar que se tenha apropriado disso para representar a luxúria e o desejo jogando com as nossas percepções. Foi a fotografia de moda que libertou o fetiche do seu espartilho da conotação sórdida ou sexual, virando-se para o glamour e sedução, associando-se ao consumo e à publicidade inflacionando a sua capacidade de criar sonhos e fantasias. A moda encarregou-se de adequar socialmente os objectos, tornando-os apetecíveis, desejados por comparação, fazendo com que o consumidor se aproxime do que foi criado pelo outro. É bem patente na fotografia de moda o jogo com os conceitos de submissão, dominação, poder e nudez, levando a que quem consome esses objectos se torne, ele próprio, o fetiche, o objecto de desejo.

Considerações finais

Quem olha a fotografia conhece, do mundo, o que se apresenta de fora de si mesmo, com exterioridade à própria consciência como uma “luz” interior, na qual, o sujeito descobre o que existe como uma adivinha, como algo mágico, nunca como um produto da sua própria elaboração conceptual.

Rotular ou aprisionar a fotografia em determinados patamares (fetiche ou moda, por exemplo) é pretender controlar o comportamento humano, paradoxo interessante quando o carácter fetichista, na sua génese, foge a esse controlo. Nesse sentido, é uma espécie de utopia quando mostra o corpo/propriedade, a possibilidade de fazermos dele o que queremos. Essa narrativa moral que tenta aprisionar a fotografia é um mecanismo de castração da representação da moral generalizada e através dessa castração, dessa reprovação expropriar o nosso poder de reflexão, de autonomia e de olhar dos corpos.

Uma fuga ao enclausuramento do comportamento humano já de si paradoxal. Assim, esse trabalho de esvaziamento, de separação público/privado da moda torna-a como objecto de legitimação da relação fetichista do olhar com a fotografia. A moda, no meio da massificação cultural tornou-se objecto dessa legitimação da relação fetichista da fotografia com o mecanismo do olhar que Laura Mulvey criticava em relação ao cinema de Holywood.

Que poética visual existe na linguagem fotográfica de um fetiche? Se eu mostro tudo corro o risco da vulgarização? A apropriação artística é que vulgariza a fotografia? E ela fica aprisionada nessa exposição excessiva? São questões motivadas pela moda, pelo fetichismo, pela nova fotografia digital, que vieram alterar a nossa percepção e fazer-nos redescobrir um sem-número de técnicas tradicionais relativas à composição, ao enquadramento, ao equilíbrio e ao ritmo das imagens, bem como à sua profundidade, textura, contraste e novas perspectivas, mostrando que a transgressão ou a perda das fronteiras convencionais ou normas, só não vulgariza a fotografia, no imediato, porque a fotografia reinventa o objecto fotografado e nos faz identificar com ele e desejar estar nele ou, de alguma forma, ser relacionado com ele.

O valor da foto, reside no equilíbrio entre o fruto das escolhas do fotógrafo, dos sentidos do olhar, condicionados pelo modo de estruturação da narrativa e o convite à nossa consciência. Uma narrativa frequentemente monopolista do comportamento humano através de uma instância externa e alheia à consciência individual, absolutamente sacralizada (a justiça divina) e que exerce suprema autoridade na vida terrena, através da mediação e supervisão permanente da conduta humana (patente no trabalho de Fabio Stachi, por exemplo). Assim e para concluir, podemos destrinçar na fotografia dois conceitos chave: a identidade e a utopia.

A identidade através do objecto fotografado no qual nos revimos e a utopia. Verificamos hoje que a sociedade assente na comunicação permanente espartilhou o contacto e fragmentou o mundo. O mundo, espaço de transformação da experiência segundo clivagens estéticas e científicas, passou para o corpo na modernidade, a base para pensar a questão da propriedade em termos políticos, artísticos e identitários. Assim, esse impulso utópico transferiu-se do mundo para o corpo através dessa mesma moda a provocar o desejo, a forçar o consumo, a torná-lo único, construindo, assim, a utopia sobre os escombros deste caos fragmentário em que se tornou a sociedade de comunicação pela mão da imagem.

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