A História das Ciências e dos viajantes que desbravaram a natureza ao redor do mundo sempre foi uma narrativa dos protagonistas. São relatos dos feitos brilhantes e heroicos de indivíduos que se destacaram no cenário científico, cultural ou social de uma época. Mas vocês já se perguntaram sobre aqueles que compunham a rede de colaboradores que eles utilizavam? O que dizer dos guias, carregadores, caçadores, indígenas, escravizados, artistas, ilustradores, auxiliares, redatores, tradutores e tantos outros que tornaram o trabalho dos protagonistas possível? Esses colaboradores foram injustamente invisibilizados pela História.
Peter Andreas Brandt foi um desses personagens imprescindíveis e invisíveis da rede de colaboradores de um importante viajante e cientista estrangeiro que viveu no Brasil: Peter Wilhelm Lund (1801-1880). Brandt teve um papel fundamental na vida e na trajetória científica de Lund, mas sempre esteve obscurecido. Passou da hora de mudarmos essa realidade.
Peter Lund foi um naturalista dinamarquês que veio ao Brasil pesquisar a flora e a fauna tropical no século XIX, mas acabou se deparando com as riquezas fósseis das cavernas mineiras, mudando o rumo dos seus estudos. Fixou-se no pequeno arraial de Lagoa Santa, em Minas Gerais, e se dedicou por décadas à exploração e ao estudo dos fósseis encontrados nas cavernas da região. Foi o primeiro cientista a fazer um estudo sistemático e contínuo sobre a formação das cavernas e sobre os fósseis, questionou teses mundialmente aceitas e propôs interpretações que ainda hoje são discutidas pela comunidade científica internacional. Diante disso, é reconhecido como o Pai da Paleontologia Brasileira.
Brandt nasceu em 1792 em Trondhjem, Noruega, antiga capital do Império Viking. Assim como os seus antepassados, carregava um espírito aventureiro e ousado. Foi um intenso e sonhador empreendedor ao longo da vida. Porém, nunca teve muita sorte e/ou competência nos negócios, o que o trouxe para uma inusitada carreira artística nas terras brasileiras.
A sua família tinha uma tradição comercial e casou-se com Wilhelmina Lossius, de origem militar, com quem teve três filhos e uma filha. Brandt seguiu o seu próprio caminho profissional e fez várias investidas, numa mescla de inovação e imprudência.
Foi auxiliar de escritório, comerciante, professor de desenho e empreendedor. Não teve uma formação acadêmica e foi sempre um autodidata. Brandt foi pioneiro na imprensa norueguesa e fundou o jornal Finmarkens Amtstidende em 1832, mas seu empreendimento não teve vida longa. Em 1834, foi ainda mais ousado e criou a primeira revista ilustrada da Noruega, a Skilling-Magazin. A revista foi uma grande novidade editorial na Europa e, para imprimi-la, Brandt comprou uma prensa litográfica altamente moderna e cara. O seu espírito aventureiro não tinha limites e, visando evoluir a publicação para uma edição em cores, adquiriu outra prensa ainda mais tecnológica, atolando-se em dívidas. A primeira edição da revista só saiu um ano depois dessa aquisição e o seu fundador não acompanhou a sua trajetória editorial até 1891. Em apuros financeiros para pagar os empréstimos e credores, Andreas Brandt fugiu da Noruega, embarcando no navio Galathea com destino à América do Sul. Deixou a sua família e o seu negócio e passou toda a vida desejando reconquistá-los. Apesar do eterno sonho de retorno, nunca mais pisou em solo europeu.
Ao embarcar, a intenção de Brandt era chegar em Valparaíso, no Chile, onde vivia um parente distante. Aportou no Rio de Janeiro na virada de 1834-1835 e permaneceu no país. Quando recebeu notícias de Valparaíso, já estava trabalhando no Brasil.
Não sabemos com detalhes como e por que Brandt se deslocou para o interior de Minas Gerais, mas há indícios de que soube da presença do dinamarquês Peter Lund e foi ao seu encontro. Escreveu para a Noruega dizendo da intenção de oferecer os seus serviços a Lund.
Brandt encontrava-se na Fazenda Porteirinhas, na cidade de Curvelo, de propriedade do dinamarquês Peter Claussen, quando Peter Lund passou pela cidade na sua viagem exploratória pelo Brasil e foi convidado por seu conterrâneo para hospedar-se na sua fazenda. Nesse cenário, Lund encontrou duas preciosidades que o acompanharam por toda a vida: os fósseis das cavernas mineiras e o amigo e auxiliar Peter Andreas Brandt.
Quando Brandt ofereceu os seus serviços de ilustrador a Lund, ele prontamente o contratou. Peter Lund também era um qualificado desenhista, mas essa tarefa tomava-lhe muito tempo. Muitos pesquisadores tinham formação acadêmica e ilustravam os seus próprios trabalhos. Lund, porém, preferiu delegar essa tarefa a Brandt para poder se dedicar integralmente à pesquisa científica. A ilustração era parte fundamental dos registros científicos, já que ainda não havia a fotografia. Brandt demonstrou ser muito competente nessa função.
Lund e Brandt partiram de Curvelo e fixaram residência em Lagoa Santa, de onde partiam para a exploração das cavernas da região. Nos períodos de seca, iam a campo e, nos períodos de chuva, catalogavam, ilustravam e analisavam o material coletado. O plano inicial era realizar esse trabalho por dois a três anos e retornar à Europa, onde Brandt esperava rever a família, recuperar o seu negócio e manter-se como colaborador de Lund. Mas Peter Lund adiava constantemente a viagem, para sofrimento de Brandt.
O norueguês planejou várias vezes retornar à Europa sozinho, mas seu endividamento no Brasil, na Noruega e com o próprio Lund, que lhe fazia constantes empréstimos, o impediam de executar a viagem. Brandt sempre foi descontrolado financeiramente e continuou fazendo investimentos arriscados e fracassados. Recebia relativamente bem como desenhista e como auxiliar de Peter Lund. Em 1837, Lund passou a receber um apoio financeiro da Sociedade Científica de Copenhague e a destinou integralmente a Brandt, melhorando os seus recursos. Mas o salário nunca era suficiente para sustentar a sua numerosa família na Noruega, para seus gastos no Brasil e para quitar as suas dívidas que se multiplicavam.
Fez tentativas de negociar com os seus credores europeus a fim de voltar para casa e reassumir a direção da revista ilustrada, mas as respostas eram sempre negativas. Pediu um alto empréstimo a Lund para financiar um negócio comercial fracassado dos filhos na Noruega que nunca foi pago. Brandt buscava constantemente caminhos para resolver a sua situação financeira, retornar para a Noruega e alimentar os seus intensos sonhos. Fez empreendimentos ousados no Brasil, mas não tinha talento para os negócios como para a arte. Investiu no comércio (um mercadinho), na fabricação de vinho de laranja e de licor, mas o prejuízo era cada vez maior.
Brandt não tinha uma vida de ostentação e recebia um bom salário, mas suas dívidas anteriores e as novas contraídas fizeram da sua vida financeira um caos. Enquanto Lund estava focado em fazer ciência, Brandt se dedicava a fazer fortuna, afundando-se cada vez mais em dívidas.
O sonho de Brandt, ancorado nas saudades de casa, o fez construir a Casa d’Água como um pedaço da Noruega em Lagoa Santa. Era uma casa de madeira com dois andares sob as palafitas da lagoa central. No primeiro andar, havia um local para guardar o barco que batizou de Galathea; no segundo andar, um quarto de estar. A construção era em estilo norueguês, com telhado típico dos vikings, e há lindos registros fotográficos dessa materialização da saudade de Andreas Brandt.
Brandt é reconhecido como artista por suas produções para os trabalhos de Peter Lund. Não se conhece as suas obras anteriores, pois certamente as realizou de forma anônima, como era comum na época. Até mesmo nos trabalhos científicos de Peter Lund, onde os seus desenhos são parte fundamental, o nome de Brandt nem sequer é citado. Peter Andreas Brandt foi invisibilizado e obscurecido.
Sua produção artística abarca várias temáticas. Registrou paisagens urbanas e rurais, cidades e fazendas, animais e fósseis, mapeamentos de cavernas. A sua genialidade é destacada nos desenhos representativos dos fósseis, pois apresentam um grau de precisão e volumetria fundamentais para a ilustração científica.
O artista utilizava, em geral, duas técnicas de ilustração. A primeira é composta por esboços em nanquim e posterior aguada de nanquim ou aquarela sobre os esboços. A segunda técnica foi usada quando Brandt desejava trabalhos mais elaborados e era desenvolvida com tinta guache misturada à goma arábica e mel. Brandt preparava suas próprias tintas e suas cores eram normalmente discretas, em tons terrosos. Suas representações humanas são distorcidas e desproporcionais, classificadas como arte naïf por alguns críticos. Acredita-se que havia intencionalidade na imprecisão artística de Brandt, sobretudo quando constatamos a sua enorme capacidade técnica em outras obras.
Os mapeamentos topográficos das cavernas feitos por Brandt a pedido de Lund são registros pioneiros e de relevância internacional. Explorou e mapeou 27 cavernas desconhecidas, sem os equipamentos necessários, sem conhecimentos prévios nessa atividade, sem equipe de apoio e com parco tempo para execução do trabalho. Brandt não utilizou instrumentos de medição de distâncias, apenas bússolas para cálculo da orientação das galerias. Diante de todas essas dificuldades, fez desenhos com grande proporcionalidade e com pequena margem de erro. Uniu a habilidade intuitiva de topógrafo com a genialidade de artista e construiu mapas que são verdadeiras obras de arte.
Mas Brandt foi muito mais que o ilustrador de Lund; foi um amigo e amplo colaborador. Certamente era um alento ter outro europeu para dialogar nos confins de Minas Gerais! Em carta ao irmão Ferdinand, em 1842, Lund descreve:
Eu tive sorte de encontrar nele não somente um artista, mas também um colaborador verdadeiro e perseverante em todas as minhas atividades. Ele passa a limpo os meus trabalhos (pois possui uma excelente caligrafia) e serve como leitor quando estou cansado do trabalho, me acompanha nas minhas viagens e é o mais zeloso trabalhador nas grutas, cuida de mim quando estou doente e assume a função de empregado servindo as visitas quando tenho hóspedes em casa [...] Dia e noite a meu serviço e tudo com uma boa vontade que não me canso de apreciar.
Peter Lund recebia muitas visitas de estrangeiros e brasileiros que buscavam conhecer o seu trabalho e receber orientações. Brandt o auxiliava nessa função e era citado nos relatos desses viajantes com admiração e gratidão.
O fim das escavações de Lund nas cavernas, em 1845, e as tristes notícias que chegavam da família (morte dos filhos e dificuldades financeiras) levaram a personalidade instável e a mente inquieta de Brandt a um quadro depressivo. Ele adoeceu e faleceu em 1862, longe da sua Noruega.
Apesar de nunca ter aprendido português, Brandt era bastante querido pela população de Lagoa Santa. Lund descreveu o seu enterro como um momento em que toda a cidade foi se despedir do amigo, sem distinção de classe, raça ou idade.
O amigo Lund o amparou nesse último momento. Brandt era protestante e temia ser enterrado no único cemitério católico da cidade. Peter Lund comprou, então, um terreno nas proximidades da cidade, o cercou e mandou consagrar uma cruz de madeira. Nesse cemitério particular, Peter Andreas Brandt foi enterrado em 21 de setembro de 1862 e, anos mais tarde, em 1880, Peter Wilhelm Lund.
Andreas Brandt fez ilustrações belíssimas, desenhos científicos de excelência, mapeamentos com alto índice de precisão, porém deixou pouco dos seus sentimentos e imaginação nas suas obras. Talvez para esconder os conflitos internos que o afligiam.
Uma exceção foi a pintura “Desenhos dos Selvagens na Pedra dos Índios perto de Mocambo”, na qual Brandt fez uma representação das pinturas rupestres na caverna. Essa obra é simbólica por se tratar da primeira representação de pinturas rupestres pré-históricas no Brasil, assim como a obra de Lund foi a primeira menção científica sobre o tema. O que nos surpreende nessa pintura de Brandt é a inserção do seu autorretrato de costas, registrando a arte rupestre. O anônimo e introvertido artista se expôs com um toque de desabafo e bom humor.
Ainda temos muito a pesquisar e revelar sobre a vida e trajetória artística de Andreas Brandt. Resgatar a sua trajetória é também valorizar a silenciada rede de colaboradores da ciência. Lançar luz sobre esse personagem obscurecido não é apenas fazer justiça. É tornar a realidade histórica do Brasil no século XIX mais completa e complexa, vívida e pulsante, compreensível e acessível e, sobretudo, mais bela e colorida.