Era começo de 2020... algo aconteceu... e o mundo prendeu a respiração por um instante. Então ele parou, calou ... e esperou...
Março de 2020. O sol estava em Peixes. O ano astrológico ia findando a beira do equinócio. As pessoas iam levando suas vidas na medida do possível, com coragem, fé e disposição como sempre. Mas eis que havia uma ameaça no ar. Ninguém sabia o quê. Então todos seguiam tensos, alertas e sem saber o que podia acontecer.
Foi então que num certo dia, um dia qualquer... foi declarada oficialmente a peste.
Como que do nada, foi dado o aviso e logo em seguida a ordem, parem tudo, fiquem em suas casas, não se mexam e... aguardem.
Aquele momento, onde foi declarado oficialmente a pandemia, foi como um antes e depois. Praticamente todo mundo lembra onde estava e o que estava fazendo quando foi decretada a calamidade.
Atentos ouvíamos os meios de comunicação para saber o que fazer. Mas acontece que ninguém sabia bem o que fazer. O cientista estava tão perdido quanto qualquer um de nós.
A origem. As medidas. E a esperança
Surgido ainda em novembro de 2019, em algum local desconhecido da China, o vírus era uma incógnita, ninguém sabia bem o que era, de onde vinha exatamente, o que fazia com nossos corpos, como se espalhava, quem eram os mais afetados e o quanto era letal. Ou seja, estávamos no escuro. Eu, você e todo mundo.
Uma corrida para entender o que estava acontecendo começou em todo planeta. Notícias pipocavam aos montes. Fechava a Itália, fechava a França, a China já tinha fechado (na Micronésia a doença seria uma lenda, mas o país também sentiria os efeitos dessa crise mundial); a doença viajando de avião ou barco vinha se espalhando num ritmo alucinante. Só o que se sabia é que era altamente contagiosa e um tipo de supergripe. Uma sensação de estar perdido tomou conta de nós. Como um leve desespero. Uma letargia inundou nossos corações como um sonho, onde era difícil saber se realmente estávamos vivendo ou imaginando aquilo.
Palavras e frases até então pouco ouvidas passaram a ser regra: contingência, comorbidades, lockdown, quarentena, epicentro, distanciamento, isolamento, grupo de risco, home office, achatamento de curva, paciente zero, um monte de siglas...resiliência.
Cenas estranhas, de pessoas com macacões biológicos tratando doentes ou esguichando desinfetante por todos os lados apareciam na tv. Hospitais lotados. Corpos embalados e amontoados. As imagens que chegavam nos apavoravam. Eram um tanto surreais, nossas cabeças não digeriam aquilo e as cenas nos pareciam uma ilusão, um filme, uma fantasia, demorávamos para entender que aquilo era a vida real.
Nos asilos, nos abrigos, nas prisões. E até nos pelotões, todos tinham medo, pois esse era um inimigo invisível e a qual todos estavam vulneráveis.
As ruas vazias, o silêncio lá fora. Apenas os animais pareciam não se importar. Era um cenário insólito. E evitava-se falar..., mas havia uma sensação de fim de mundo.
Todas as mudanças nas rotinas, a estranheza e absurdos delas. Conversas por vídeo, distâncias mínimas nas filas, controles de acesso, passar em máquinas que borrifavam desinfetante em nós, cumprimentos sem toque físico, prédios fechados, visitas virtuais, marcas no chão, álcool no bolso e máscaras jogadas por todos os cantos, e sobretudo a criatividade para fazer o tempo passar. Tantas coisas. Os rostos estavam cobertos há tanto tempo que até esquecíamos como era a cara das pessoas. Solitude ou solidão.
Em meio a tudo isso tentávamos nos manter sãos... de corpo e mente. Artistas faziam shows de suas salas. A internet estava a mil. Piadas eram contadas para aliviar. Velhas histórias vinham à tona. Uns enlouqueciam silenciosamente ao que outros aguardavam com a calma possível e na fé. Alguns se revoltavam com a clausura, outros se sentiam aliviados em poder finalmente ficar um tempo em casa. Pintavam-se paredes. Consertavam telhados. Aprendia-se a costurar, a fazer queijo. Cuidava-se das plantas. Abria-se finalmente aquele vinho esquecido e envelhecido na estante. Como disse um conhecido, nunca na história da humanidade se fez tanta camiseta tie-dye.
E havia aqueles que não podiam ficar em casa, que tinham que manter as coisas essenciais, pessoas comuns que tratavam de manter o mundo girando, heróis anônimos. Muitos sobreviveram, claro. Mas muitos caíram sem que soubéssemos seus nomes. E muito do mérito de estarmos aqui hoje é deles, desses que trabalharam em contato direto com outras pessoas, seja os que viveram para contar a história seja daqueles que se foram. Na esteira dos acontecimentos, teorias eram levantadas. Seria uma guerra biológica? Uma conspiração mundial reduzindo a superpopulação? Um vírus fugido de um laboratório? Ou solto intencionalmente? A própria natureza tratando de equilibrar o ecossistema? Um animal que não deveria ser comido? O homem causando sua própria ruína? Profecia? Castigo divino? Ou acidente, um mero acaso?
Epidemias sempre acompanharam a humanidade, relativamente brandas ou arrasadoras, regionais ou mundiais, uma doença de massa não era novidade. Porém, a última numa escala parecida tinha acontecido há 100 anos, e era como uma lenda contada pelos mais velhos para nós. Também as pessoas que a tinham presenciado e sobrevivido, poucas ainda estavam vivas e lucidas para contar como foi daquela vez. Tirando os estudos médicos anteriores (que mesmo estes também podem conter falhas) a maioria do que se falava era só especulação. A sociedade atual não sabia como reagir, pois, as pessoas de hoje nunca tinham vivido algo como isso. Então éramos nós por nós mesmos.
As crianças maiores e os jovens também achavam tudo aquilo meio estranho. De repente se trancar e se esconder? Aquilo era normal no mundo dos adultos? Isso sempre acontecia? Até hoje não sabemos bem como eles encararam tudo aquilo e qual foi o impacto na sua visão de mundo.
Um passeio pelo deserto. Pode vir comigo
A esta altura, preciso eu mesmo dar meu testemunho. Apesar de naquela época ainda não termos certeza de como a praga se propagava, se por suor, sangue, fluidos corporais, gotículas ou mesmo simplesmente flutuando no ar (o maior medo de todos, nesse momento ainda não se sabia bem como era a propagação, era o tempo em que as pessoas ao chegar em casa lavavam as compras, deixavam os sapatos para fora, tiravam toda roupa antes de entrar e ao menor sinal de indisposição se isolavam no recinto que desse) ainda assim, havia alguns que se arriscavam em dar uma volta por aí.
Eu era um deles, em um ou mais dias de maio de 2020, saía para caminhar no começo da noite com meu cachorro (ele ao natural, sem coleira, correndo livremente), quando não havia mais ninguém nas ruas. Eram apenas 8 da noite, mas parecia alta madrugada. Tudo fechado, apenas uma ou outra padaria aberta, os funcionários sem muito o que fazer, de longe pelas vidraças me fitavam, intrigados com minha aparente tranquilidade, eu ia pela calçada, mas podia muito bem andar no meio da rua, pois não passavam carros nem motos. Lá fora, um dos poucos barulhos que se ouvia era do caminhão de lixo, com seus intrépidos coletores (estes sim, homens a prova de tudo) se arriscando recolhendo aquele lixo que até onde se sabia podia ser tóxico. As vezes a polícia passava, mas tinham amor a própria vida, fingiam não me ver e evitavam me interpelar. As pessoas que me viam das janelas, olhavam curiosas e atônitas, com um certo ar de reprovação, mas assim que eu olhava de volta logo se escondiam atrás das cortinas, como num filme de terror ou bang bang, onde eu fosse um saqueador, um psicopata, uma ameaça ou um tipo de louco.
Mas tem que se dizer. Como era bom andar ali. Aquela falta de movimento. A paz. A sensação de ter o mundo só pra você. É quase impossível explicar. Era como flutuar. Esse mundo tão belo quanto tão terrível parecia uma ilusão, uma brincadeira de algo maior. Andar naquelas noites era como uma epifania demorada.
Sei, muitos aqui me acharão inconsequente. E de forma alguma desfaço da dor da experiência de cada um. Mas era um risco calculado. Eu também temia por mim, pelos meus e pelos outros, só que buscava aproveitar todo aquele absurdo de alguma forma positiva.
Além do mais... quando eu poderia ver aquilo de novo?! Tudo aquilo que vi, o que senti, o que pude pensar a partir daquele deserto, me tocou profundamente. E até hoje reflito pelo que todos passamos...cada um ao seu modo.
Foi só muito tempo depois daquilo tudo, que ouvi uma canção, e ela lembrava um pouco a sensação daquelas caminhadas...
A música dizia assim:
Pare de pensar
No que pode acontecer
Pesadelos ou pra fora de nós
E qualquer outro medo... de sonhar
Pra fora do enredo, ou nosso lar
Ah... não que eu seja sem medo, mas mesmo assim não temo
Pode vir. Pode vir comigo...(Phill Veras, Pode vir comigo, 2012)
O mito do sair melhor
No auge da calamidade, tentamos tirar algum proveito disso, como dizem tudo tem seu lado positivo. Então inventávamos motivos para ter esperança, algo muito nobre claro.
Mas talvez a maior falácia tenha sido a de que sairíamos melhores depois da crise. Mais humanos, mais caridosos, mais compreensivos, reveríamos nossos erros e assim a humanidade sairia mais fortalecida. Não foi o que aconteceu. Assim que a peste arrefeceu os ânimos não seguiram na mesma direção. As pessoas, depois de tanto tempo se privando e vivendo num estado mental de tensão, em sua maioria estavam mais desesperadas, imediatistas, intolerantes, exageradamente hedonistas e com vontade de “viver tudo agora”. Satisfazer seus desejos é o que importa, porque não se sabe do dia de amanhã.
As perdas
Mas sim, houve a tristeza. Muitos de nós perdemos alguém ou soubemos de alguém que se foi. Fosse um amigo, um vizinho, um colega, um parente, uma pessoa muito querida ou um mero conhecido. Um dia era um, no seguinte sabíamos de outro. Mesmo que nós ou um próximo não fosse a vítima recente, íamos saber pela boca de outros que alguém caía perante a doença. Ou simplesmente era a observação a rotina que nos dava repostas, uma pessoa que você via sempre passar na sua rua e de repente desaparecia, uma casa que ficava vazia. Então, taciturnos rezávamos, por aquele que ia... e pelo nosso incerto futuro.
Alguns ainda, muitos, teriam além daquela experiência de adoecer, de lidar com sequelas que ficariam, perdurariam como uma dor, uma perda de autonomia, uma incapacidade, um lembrete de nossa fragilidade perante a natureza.
Numa guerra silenciosa, seguíamos absortos e víamos uma estranha realidade se colocar diante de nós. Enterros apressados, sem velório. Sem tempo para chorar os nossos mortos. Quase numa escala de produção. Profissionais de hospital esgotados, apavorados, chorando. Coveiros exaustos, com terra até os ossos, aquela terra que podia conter a peste, e ao voltar para casa não sabiam se podiam abraçar seu filho.
Todos nós temos lembranças daquela época. Todos. Tenha passado mais ou menos ileso ou tendo enfrentado grandes desafios, você com certeza tem algo pra contar. Agora eu o convoco a pensar por um minuto no que te aconteceu naquela época.
Viu? Com certeza alguma lembrança lhe veio à tona. Algo que é seu. Diz respeito a você, mas também fala sobre este mundo.
O esforço pra esquecer
Alguns gostam de dizer: “Mas a pandemia não acabou.” De certa forma não mesmo, adormeceu. Porém todos sabemos que não estamos mais naquele cenário desolador de pouco tempo atrás. Coisas que confirmam isso, além do óbvio é claro, são que não se vê mais a mídia alardear números, óbitos e tratamentos, não é mais notícia. E as tais palavras usadas a exaustão, tão repentinamente quanto surgiram, trataram de desaparecer do nosso vocabulário.
Fato é, que toda essa experiência foi extremamente marcante na vida de todos nós. Até hoje tentamos entender o que foi aquilo. E ao olhar para trás volta a sensação de que não foi verdade, como um sonho ruim.
Depois de eu levantar todas essas coisas, talvez você deva estar se perguntando, mas porque lembrar de tudo isso?! Além de propor a reflexão, objetivo principal aqui. Tem outra coisa...
Lembro que quando a pandemia acontecia, muitas eram as palavras, as teorias, as opiniões. As pessoas ávidas por sobreviver e poder contar a história. Isso é normal, toda grande crise leva a análises posteriores, todos queremos falar, dizer como foi a partir de nosso ponto de vista, o que foi para nós aquilo, lembrar aos outros, fazê-los refletir e por fim assim nos conectar com os que também viveram aquilo.
Mas veja só... O que veio depois foi um fenômeno ao contrário disso. Fora alguns tratados médicos que só são circulam nos meios acadêmicos da saúde, no mundo chamado comum não saíram livros, documentários, filmes, artigo analisando o que se passou. Não se vê nada. Como se não tivesse acontecido. Parece que as pessoas fazem questão de esquecer aquilo, pois foi demasiadamente traumático.
No livro O Gigante Enterrado, o escritor Kazuo Ishiguro, vencedor de Nobel, brinca com a questão da memória. Após um grande desastre mundial, surge uma névoa que aos poucos vai fazendo as pessoas esquecerem as coisas que se passaram. O dilema da história é: deveríamos realmente querer lembrar, ou é melhor deixar o passado pra trás e seguir em frente? Uma metáfora que serve bem ao pensar no que passamos.
Esse estranho silêncio pode nos dizer algumas coisas.
Uma é o processo de cura. Precisamos esquecer para ter uma sensação mais leve, mais aceitável, nossa psique ficou profundamente marcada por aquela fase e tenta se livrar do trauma para seguir adiante. Sabemos todos nós, adultos, que a vida é uma luta infinita pela sobrevivência, e o que se passou nos apavorou de tamanha forma, que precisamos negar o que aconteceu em nosso subconsciente.
Outra, uma das maiores belezas da vida é que ela é imprevisível, paradoxalmente este também é o maior terror para nós seres vivos. Daí a impressão de que não devemos dizer que vencemos, é o tal “não cante vitória ainda”. No fundo tememos que tudo possa voltar. É como se disséssemos “Fale baixo! O universo pode escutar!” Por isso ao invés de chover análises sobre o que foi a pandemia como era de se esperar, se instaurou este silêncio tímido e amedrontado. As pessoas, pensadores inclusive, tem medo e vergonha de dizer que aquele tempo acabou.
Além disso tudo, também é um evento muito recente, ainda não nos livramos dele. Como que estamos deixando o tempo passar para ter certeza de que podemos falar daquilo com calma... e a salvo. Estaremos esperando para ver o que acontece? Aguardando o distanciamento seguro que só o tempo nos dá? E só assim poder dizer com certeza, eu vivi para contar?
Por fim. Há ainda o fantasma do medo de novas epidemias. E já foi dito que isso pode acontecer a qualquer momento. Num mundo com excesso de seres humanos, predação selvagem e constante da natureza, tecnologias de resultados não previstos, pesquisas desenvolvidas em segredo, tudo isso num mundo globalizado onde deslocamentos são triviais, podendo uma pessoa atravessar o planeta em um dia, ninguém está realmente seguro.
Mas sabemos que lembrar faz parte. Para que se evite novas catástrofes sim, mas também para que se reveja trajetórias, soluções, métodos, escolhas, conceitos, estilos de vida, consumo e até nossa forma de encarar a vida nessa dádiva que é o planeta. Isso nos diz que, a vida é rara e que talvez precisemos respeitar o que o mundo nos provê.
“Tempos de incerteza”; essa combinação estranha de palavras, se tornou um termo, uma frase a ser repetida aos quatro ventos, talvez até um mantra. No fim nossa maior proteção é o acaso.
Esquecer? Lembrar? Eis a questão. De toda forma estamos todos sujeitos aos caprichos do destino. E entre o céu e a terra há mais do que espera nossas vãs vontades.
P.s: Este texto no fim, também é uma tentativa de se conectar com vocês... que viveram isso tudo.