A liberdade é um conceito muito amplo e nobre, e que foi apropriado por diferentes pessoas e movimentos políticos ao longo dos tempos.

Historicamente, um dos grandes movimentos sociopolíticos a tomar este conceito para si foi o movimento anarquista. Inclusive, o anarquismo também é conhecido como libertarianismo. Embora nas últimas décadas o movimento anarquista tenha perdido expressão popular, o conceito de libertarianismo continuou associado aos anarquistas. Grande parte dos direitos trabalhistas que temos hoje no mundo foram conquistados graças aos movimentos anarquistas de trabalhadores no final do século XIX e no começo do século XX.

Liberdade muitas vezes é confundida com liberalismo. Embora, na sua raiz teórica, o liberalismo reivindique a liberdade de seus cidadãos, o conceito foi desviado por interesses políticos em diferentes países.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a palavra “liberdade” costuma estar relacionada com o liberalismo econômico. Nas últimas décadas, o conceito de liberdade foi tomado de assalto pela ultradireita: políticos como Trump e seus seguidores usam esta palavra para justificar seus crimes e discursos de ódio. Liberdade para quê e para quem?

Na Argentina, o atual presidente é do partido “La Libertad Avanza” (A Liberdade Avança). O ultradireitista Javier Milei usa o termo “libertário” para se definir, mas está longe de ser um anarquista: nos primeiros 100 dias de seu governo, houve demissões massivas, fechamento ou desfinanciamento de instituições estatais chave, arrocho salarial e hiperinflação. Em março de 2024, a Argentina chegou a ter a inflação mensal mais alta do mundo, mais que a Venezuela ou países em guerra. Muito longe dos conceitos de solidariedade, autogestão e horizontalidade que o anarquismo prega. Liberdade para quê e para quem?

Erramos quando damos esta palavra de presente à ultradireita porque a liberdade é algo que almejamos como seres humanos. Erramos porque a ultradireita ataca diretamente a liberdade de ser de grupos de pessoas, enquanto usa o termo para justificar suas políticas odiosas. Um país livre não é um país onde sua população está à míngua, ou onde seus direitos humanos básicos são atacados diretamente pelo Estado.

O sociólogo, escritor e ex-ativista Jorge Lago, em entrevista ao ElDiario.es, disse que:

O neoliberalismo muitas vezes ganhou da esquerda porque foi capaz de dizer às pessoas ‘lavre e trabalhe você mesmo seu próprio futuro, escolha, autodetermine-se’. Tudo isso na boca do neoliberalismo soa a esperpento, mas conecta com um desejo de emancipação, de ser o arquiteto de si mesmo. A esquerda tem que ocupar esse espaço, mas de uma maneira distinta, radicalmente distinta, que é dotando de ferramentas para que as pessoas possam trabalhar seu próprio futuro: salários assegurados, habitação, saúde. Não tanto desde um Estado intervencionista, burocrático à maneira da social-democracia antiga, mas jogando muito bem esse equilíbrio entre dotar de segurança material e de enorme liberdade de escolha e de autodeterminação, inclusive individual. Sem ter medo de falar de liberdade individual. Um dos grandes erros da esquerda é dar de presente a liberdade para a direita, a [Isabel Díaz] Ayuso [presidenta da Comunidade de Madrid] e suas bravatas. É justamente o contrário, porque ao não haver na Comunidade de Madrid de forma evidente condições materiais para exercer a liberdade, pois não há liberdade nenhuma, ou há a liberdade de uns contra a de outros e isso não é liberdade.

A liberdade é um conceito demasiado nobre para ser deturpado por políticos a seu bel-prazer. A liberdade de expressão, tão necessária para um jornalismo de qualidade, não pode ser confundida com liberdade de odiar ou com ataques à democracia, como prega a extrema-direita.

É imprescindível que recuperemos o uso da palavra - e do conceito de - liberdade em um sentido amplo. A liberdade de ser, de fazer, de viver sem prejudicar a liberdade das outras pessoas. A liberdade de amar, a liberdade de decidir o que é melhor para as nossas vidas.

Jorge Lago, sobre seu último livro junto a Pablo Bustinduy, Política y Ficción. Las ideologías en un mundo sin futuro (Política e Ficção. As ideologias num mundo sem futuro, 2024), também comentou: “não faz falta tanto imaginar ficções, ideias de futuro, de como deveriam ser as coisas, de como deveria ser a sociedade, porque é a própria sociedade quem as produz: o movimento feminista, o Black Lives Matter, o movimento ecologista... (...) Somos otimistas no sentido de que vemos que a própria sociedade já produz essas imagens de futuro, embora não sejam necessariamente congruentes umas com as outras e não produzam uma ideia homogênea de futuro. Não tem problema."