A Freemuse é uma organização internacional independente dedicada à defesa da liberdade de expressão artística. Nos últimos anos, a organização tem documentado e monitorado violações à liberdade artística em todo o mundo, fornecendo assessoria legal e promovendo campanhas informativas sobre a liberdade de expressão. Um de seus principais objetivos é criar um mundo onde os artistas possam se expressar livremente, sem temer a censura ou a perseguição.
Recentemente, a Freemuse adquiriu status consultivo especial junto ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e à UNESCO. Esse reconhecimento elevou a credibilidade de suas iniciativas, permitindo que a organização influencie na formulação de políticas públicas e práticas em níveis internacionais, nacionais e regionais.
Entre os princípios que orientam a organização, destacam-se o respeito à diversidade, a honestidade e a coragem. São esses valores que têm impulsionado a Freemuse a uma incansável busca por aprimoramentos nas políticas de proteção à liberdade artística e na defesa dos direitos legais dos artistas. Não à toa, a instituição vem gradativamente angariando maior reconhecimento por parte de artistas, ativistas e organizações culturais em todo o globo.
Desde 2011, a instituição vem elaborando um relatório anual sobre o tema da liberdade artística. O mais recente, focado nos eventos de 2022, apresenta uma análise abrangente sobre os inúmeros desafios enfrentados por artistas em todo o mundo, especialmente em regiões marcadas por conflitos e regimes autoritários.
Durante o ano em questão, uma tendência alarmante foi observada quanto às sentenças de morte. Em Mianmar, o rapper Phyo Zeyar foi condenado à pena capital, refletindo um clima de total repressão no país. Da mesma forma, na Nigéria, o cantor Yahaya Sharif-Aminu enfrentou graves acusações de blasfêmia, correndo iminente risco de execução. Também no Irã, Toomaj Salehi teve de lidar com severas consequências por se manifestar artisticamente, evidenciando um padrão global de violação dos direitos humanos.
O relatório ressalta ainda um desafio global persistente: a perseguição sistemática direcionada a artistas mulheres e membros da comunidade LGBTQIA+. Políticos populistas e conservadores são identificados como atores principais nesse cenário, continuamente relacionando expressões associadas ao gênero e à diversidade sexual com valores morais e religiosos de suas nações.
Além disso, esta edição do relatório aponta para um padrão preocupante de censura e intolerância, onde tais ataques são frequentemente embasados em acusações infundadas, como supostas ligações com pornografia, pedofilia e heresia.
Em anos passados, o Brasil também foi citado pela Freemuse. Por aqui, é comum vermos exposições de arte censuradas ou vandalizadas, seja pelo poder público ou por visitantes conservadores e fundamentalistas. Exemplo disso ocorreu com a exposição “O Grito!” na Caixa Cultura de Brasília. A mostra foi suspensa após críticas à obra “Bandeiras”, de Marília Scarabello, que retratava políticos em uma lata de lixo. A artista relatou ameaças, e a exposição foi suspensa sob alegação de viés “político-partidário”.
Em um relatório à parte, publicado em fevereiro deste ano, a Freemuse denunciou que, recentemente, os mecanismos de censura têm se tornado mais discretos e sofisticados. Nesse contexto, o Brasil está prestes a entrar para o grupo dos países que correm graves riscos ao seguir o caminho de países autoritários, como Polônia, Rússia, Hungria e Turquia. De acordo com a organização, estes países tentam controlar a cultura e a arte em uma instância anterior e menos visível, ou seja, os círculos acadêmicos e museológicos.
Em um cenário cultural em que as produções dependem cada vez mais do financiamento público, como ocorre no Brasil, instituições culturais acabam se tornando vulneráveis à imposição de agendas políticas populistas e de extrema-direita. Dito de outra maneira, o alinhamento ideológico com determinadas pautas pode se tornar um requisito para a concessão de verba, enquanto a dissidência mingua até o esgotamento de seus próprios recursos.
Muitas vezes, essa censura é justificada por questões de ordem técnica, quando na verdade se trata de um boicote ideológico. A não concessão de financiamento para projetos artísticos, seja por motivo de recessão econômica ou alegada inabilidade operativa, é, por vezes, melhor aceito pela sociedade do que o ato mais drástico de proibir e fechar uma exposição de arte já iniciada.
Este último, não raro, desencadeia um intenso debate na sociedade sobre os limites da liberdade criativa e o papel das instituições na promoção e na proteção da cultura e da diversidade das manifestações artísticas. Enquanto a censura é frequentemente repudiada, vista como uma tentativa violenta de restringir a expressão criativa, a inviabilização de recursos financeiros, quando aplicada em instâncias anteriores, pode ser interpretada como uma forma de austeridade fiscal das contas públicas.
Além da censura política, o Brasil está na lista dos países que mais restringem a liberdade criativa por motivação religiosa. Tal justificativa encontra eco com razoável frequência na atuação do poder público e judiciário, embora, a princípio, devam ser laicos. O exemplo mais flagrante da dinâmica dessa censura religiosa para coibir a livre expressão artística foi a tentativa de banir o filme “A Tentação de Cristo”, produzido pelos comediantes do grupo Porta dos Fundos.
Na ocasião, políticos filiados ao PSD e ao Republicanos justificaram a moção de censura alegando que a representação de Jesus Cristo como homossexual seria uma afronta a toda a comunidade cristã. Como resultado, a justiça do Rio de Janeiro determinou a censura e a retirada do filme de todas as plataformas em que era exibido. Pelo menos sete ações foram ajuizadas contra a produtora.
Diante do panorama exposto, fica claro o papel vital desempenhado pela Freemuse na defesa da liberdade artística em todo o mundo. Seus esforços para documentar violações e influenciar a criação de políticas públicas para a proteção dos direitos fundamentais dos artistas têm se mostrado extremamente eficientes e bem-sucedidos. No entanto, os desafios persistem, especialmente considerando a sofisticação dos mecanismos de censura e o iminente retrocesso de alguns países, como o próprio Brasil.
É extremamente importante que a sociedade se mantenha vigilante, rejeitando toda e qualquer forma de censura. Além, é claro, de manter o apoio a iniciativas como a apresentada nesta coluna. A voz dos artistas não pode, de maneira alguma, ser silenciada, sob pena de vivermos em uma sociedade sem alma, sem pensamento crítico, sem humanidade.