Segundo antigos historiógrafos, em um dos perdidos volumes de sua enciclopédica Ab Urbe Condita, Tito Lívio escreveu que os romanos aprenderam com os cretenses que, menos como aparato recreativo, os labirintos serviam como penitência “pedagógica” para os que se insurgiam contra a ordem reinante, uma vez que ao extraviado em seus emaranhados os labirintos inspiravam o inominável horror de se ver banido da simétrica ordem terrena do cosmos com a qual, sem suspeitar, nos orientamos ao longo da vida.
Sabedores de que as infinitas alternativas que falsamente pressupõe o caos podem ser mais tormentosas que a opressão de não se ter escolha alguma, soberbos algozes persas da época de Ciro imaginaram substituir o confinamento dos calabouços por um desmesurado labirinto de labirintos. Inexequível, porém, apenas em pesadelos ou em mitologias podiam conceber sua monstruosa arquitetura, onde, para incitar o desespero da procura por uma saída, fantasiosas crueldades incorporaram uma figura bestial vagando hedionda por seus múltiplos corredores encruzilhados.
A solução foi o degredo para a angústia solitária dos labirintos sem paredes representados pelo mar-oceano, pelas areis de desertos desmesurados, pelas florestas tropicais, pelas calotas polares. Propositais ou não, ágrafos códices penais cominavam o réu ao purgatório desterro onde os aniquilaria o vexame de reconhecerem a culpa comum de sermos insuficientes, contingenciais, de sozinhos sermos um irrisório átomo à deriva, em busca desvairada por significado para poder sobreviver.
A propósito, não é raro pessoas que estiveram perdidas numa floresta relatarem que o cume de sua agonia foi uma espécie lancinante de humilhação. Ou seja, de um sentimento de culpa pelo próprio rebaixamento em que se reconhece a absoluta impotência. Isso talvez seja indício de que o medo, a solidão e o esgotamento físico sejam menos acabrunhadores em si mesmos do que como resultado de uma perda, de nos vermos privados de um posicionamento claro e determinado no mapa de um mundo antes casual e prosaico que de repente se torna inequívoco e indispensável quando estamos perdidos.
Dentro do grupo social, por mais exíguo que seja, sentimo-nos protegidos por uma insuspeita série de esteios. Só ali as coisas podem ou não fazer sentido. Construímos códigos e suas violações, padrões e disparidades. Por trás do retiro ou da misantropia de um indivíduo, existe uma comunidade que lhe serve de referência nem que seja apenas para que ele impute a necessidade do seu próprio isolamento. Não foi senão dentro de uma profunda interação comunitária diante das distintas maneiras em que se apresenta a natureza em nosso entorno que fomos aprendendo a levar a vida. O grupo é que nos fornece o contraste entre os sexos, entre as idades, entre as relações de parentesco e afinidade, entre as consequências de determinados comportamentos e posturas. Só em sua conjuntura é que podemos estabelecer uma teia de códigos para interpretar o mundo e o além, encontrar consolo e esperança diante da ruína ou da morte.
Uma das falhas da teoria econômica marxista é não comportar fundamentos antropológicos, o que resultou no equívoco de postular que a divisão do trabalho foi uma invenção da economia de mercado. Ao contrário do que se imagina, dificilmente um sujeito isolado de sua tribo consegue acender o fogo, por exemplo, confeccionar anzóis e arapucas eficientes, ou conhecer o emprego alopático das ervas endêmicas de sua região. E, por óbvio, quanto mais complexo, quanto mais populoso esse ambiente mais o sujeito se vê incapaz de reproduzi-lo sozinho, tanto em sua esfera material quanto espiritual. E é nesse âmbito multitudinário e onipresente atual, regulado em seus mínimos detalhes por instituições impessoais, povoado por milhares de rostos estranhos e ao mesmo tempo uniformes, que a alegoria do labirinto ressurge como imagem colateral da própria configuração geométrica urbana.
Aplacadas as ameaças elementares da miséria e da violência de antanho, contra as quais estar unido ao grupo era a única alternativa, o advento do psicologismo que naturalmente veio no âmago do laico mundo moderno, nos revelaria porém os intrincados meandros em que o indivíduo poderia voltar a se perder: sua própria consciência. Entidades como o gênio, o daímôn socrático ou o espírito e a ânima, tornaram-se meros termos ou simbologias redutíveis à mente, à psiquê. E aconteceu de esses neuróticos recintos cerebrais hospedarem o terrível minotauro da culpa inconsciente, a fera do trauma ancestral, da dor recolhida, dos assédios da loucura e da falta de rumo e sentido.
Por volta de 1942, Albert Camus, perdido em um desses íntimos labirintos deu com o que chamou de “absurdo”, ideia que desenvolveu em seu aclamado O Mito de Sísifo, uma alusão à parábola da tarefa ou do destino vãos, que ele elegeu como uma perfeita metáfora da vida contemporânea e seu pendor suicida. Em resumo, concluía que, recluso em si mesmo, em sua absurdidade, ao homem nada mais digno restaria senão abster-se do suicídio para mergulhar no absurdo para encontrar vivacidade. Ora, nada mais absurdo do que pensar que o absurdo signifique alguma coisa, do que hipostasiar uma noção cuja finalidade é justamente a de nos dar a noção de falta de sentido.
Para a época, para as circunstâncias, esse absurdo talvez fizesse algum sentido, sobretudo para o próprio Camus, francês crescido em uma Argélia colonizada por seus patrícios, que não conhecera o pai, morto na Batalha do Maine, em 1914. Devoto de Dostoievski e de Nietzsche, seus heróis no séc. XX foram os arautos do socialismo que viu malogrado ao tomar conhecimento do que de fato se passava no Leste Europeu, com sua fé e seu desengano no ressentido argumento de que “ou não somos livres e o responsável pelo mal é um Deus todo-poderoso; ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”.
Por aqueles mesmos dias, no sul da Polônia, cerca de seiscentas milhas do escritório em Paris onde o franco-argelino esgrimia a pena de sua revolta subjetiva, e diante de uma falta de significado do mundo exterior muito mais dolorosa, Viktor Frankl sentia na pele e na alma as agruras de prisioneiro em um campo de concentração nazista. Sua abordagem dessa experiência atroz lhe renderia uma pequena psicobiografia, como ele mesmo apelidou seu livro. Nele, ao contrário de Camus, Frankl não confundia a tentação de se tirar a própria vida com uma questão filosófica, sequer a cogitou seriamente; e onde está registrado que foi justamente em seu mundo interior que Frankl encontrou clareza e perspectivas para encontrar saída diante dos sítios do vazio, da infâmia e da morte.
Assinalados os distintos contextos, não se trata de juízos de valor, mas de fato. Contra as angústias de cada qual, nenhum dos dois “apelou” para uma divindade. Mas o texto de Viktor Frankl a enuncia quando admite que “se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá”, enquanto Camus, literato com veia filosófica, tenta encontrar no nada, no absurdo em que enxerga a vida e o mundo, a divindade do seu próprio ego devassado no labirinto sem saída do existencialismo. Sintomático disso é que chega a elencar uma frase de Kirilov, personagem de Os Demônios: se Deus não existe, então eu sou Deus.
Viktor Frankl abriu mão de uma filosofia talvez porque era demasiado real e premente o seu extermínio. Porque viu que, uma vez brutalizado, o ser humano retorna à era em que suas aspirações se resumem ao mero instinto de sobrevivência. Entusiasta da psicologia, fundou uma longeva e próspera escola de terapia, na qual se ensina princípios como o de que deve haver uma dignidade em nossos tormentos, e que, como em Kierkegaard, a única e verdadeira liberdade é a que nos chega com a certeza de que por trás de tudo há um sentido que nos transcende.
O livro O Mito de Sísifo arrasta ainda hoje uma multidão de comentaristas e leitores, atraídos pelo seu título sugestivo, atrás de remédio para suas angústias. Porque os sintomas de desespero permanecem até hoje. Porque Camus, perdido ele mesmo, sem saber que sua própria filosofia era absurda, jamais pôde guiar alguém dessa multidão para fora do labirinto. E parece emblemático dessa perdição o fato de aqueles a quem Camus considerava seus mestres inspiradores terem sido a maioria acometidos pela demência precoce e pelo suicídio.