Pouco é a literatura usada como princípio educativo, mas, no máximo, como objeto de estudo. Neste caso, procuraríamos entender os livros em seus aspectos mais acidentais: sua data, local, influência, etc. Já no primeiro, a linha que separa o observador do observado se tornaria tênue, não se lê com os olhos, mas com o coração; não se lê a história de algo ou alguém, mas, simbolicamente, a própria história; não se lê causas e efeitos, mas razões e consequências; não se lê, contempla. Aí estaria a essência da educação: a elevação do espírito – ao contrário do conhecimento enciclopédico.

Este princípio educativo não é fruto de outra coisa senão de dois importantes fatores, a saber, a beleza e a meditação, respectivamente. A contemplação daquilo que é belo, de algum modo, instiga a meditação, que nada mais é que um processo semelhante à digestão de um alimento – é preciso tempo e trabalho para aproveitar os “nutrientes”. Ora, que obra desperta o desejo de meditação senão a mais bela? Mas, quem dera fosse simples distinguir entre o belo e o não belo. Se, por um lado, toda boa obra literária é objeto das reflexões, por outro, nem toda obra objeto das reflexões é boa. Seria injusto da minha parte, portanto, fazer um convite à literatura, expondo suas razões, e deixá-lo, leitor, sem os mesmos parâmetros que tenho em mente – a fim de que a má literatura não se torne alvo de seus pensamentos.

Até o momento, apenas me referi à literatura secular, mas, para investigar suas razões, é preciso investigar as razões da literatura sagrada. Não poderia ser diferente, a literatura sacra é, por assim dizer, a primeira literatura; além disso, a secular, a princípio, foi concebida como imitação do sagrado. Mas, apenas a investigação dessas duas naturezas ainda não seria o suficiente. Se falamos de um princípio da literatura, por consequência falamos de Homero. Se este poeta – e, aqui, não me proponho a abordar a questão homérica – é a base da literatura ocidental, compreender suas razões e as diferentes formas de como ele foi recepcionado já é resolver boa parte da questão.

Homero teria sido o autor da Ilíada e da Odisseia, e, independentemente da data dos dois poemas, eles são uma das raízes da cultura da Grécia Antiga. A Ilíada retrata a Guerra de Troia, o envolvimento dos deuses e o ódio de Aquiles. A Odisseia conta a história do retorno de Ulisses, depois da guerra, para a sua casa e a reconquista de seu lar.

Ambos contos possuem como motor principal os deuses, o drama não era apenas imaginativo, mas, em alguma medida, cosmológico. A prova disso é que, nos tempos de Sólon (638 – 558 a.C.) – ou Pisístrato (600 – 528 a.C.), ou Hiparco (527 a.C.) –, a Ilíada era recitada no festival de Panateia, uma comemoração dedicada à deusa Atenas. E justamente nesse tempo, que também era de queda das tradições gregas, é que veríamos as primeiras críticas aos textos homéricos. Desde Xenófanes (560 – 478 a.C.), que se posicionava contra a antropomorfização e a multiplicidade dos deuses; Platão, que questionava o valor educativo dos épicos; Aristóteles, que via beleza e grandiosidade nos textos; desde esses pensadores até Virgílio (70 – 19 a.C.), o texto é visto como objeto de uma possível crítica.

O que se percebe é uma ruptura na maneira como os textos homéricos eram recebidos. Num primeiro momento, o seu valor é religioso, sagrado – ele trata de uma existência que antecede os heróis, pois todos eles seriam, no mínimo, descendentes de algum deus. Em seguida, eles seriam recebidos como algo de muito valor, eram fundadores, importantes, pois eram helenos, enriqueciam uma realidade mais ou menos atual, isto é, a realidade da religião grega. Nestes dois tempos, Homero, se não tinha um valor existencial, tinha, no mínimo, um valor de identidade. Uma ruptura muito mais ainda estaria por vir com a recepção cristã. Mas, para abordar esse fenômeno, é necessária uma curta explicação. Existe uma diferença substancial entre a recepção dos gregos aos textos homéricos como sagrados e a recepção dos hebreus à Torá como texto revelado, por exemplo. Ainda que a Ilíada e a Odisseia fossem extremamente importantes nos primeiros anos, elas não tinham caráter salvífico, muito menos condenatório; de modo que alguns séculos depois elas foram perdendo sua eficácia religiosa, mas o mesmo não ocorreu com o texto dos hebreus – mesmo milênios depois. Homero nunca se apresentou como fundador da fé, nunca fez promessas – apenas teria documentado uma história e uma crença que já era estabelecida. Temos razões para crer que os poetas gregos não estavam no mesmo patamar que o dos oráculos. De fato, a sua sacralidade estava fadada ao fim.

Tendo isso em mente, agora é possível compreender a recepção cristã dos textos homéricos e pagãos. Se engana quem pensa que foi uma fácil conciliação, pois o judaísmo não concebia qualquer mistura, e se havia, era acidental. O repúdio ao mundo pagão, que sempre foi o princípio dos Profetas Maiores, e que renasceu após a Revolta Macabeia (167 a.C.), foi naturalmente recebido pelos cristãos. Justino Mártir (100 – 165 d.C.), um dos Pais da Igreja, parece admitir a literatura pagã, no mínimo, como uma sombra de Cristo, como uma prova de que pela razão seria possível perceber alguma verdade. Basílio de Cesareia (330 – 379 d.C.) vê, explicitamente, a literatura grega como boa ferramenta para a educação, tentando conciliar a verdade cristã com a utilidade dos textos pagãos; contudo, essa tentativa é recheada de pormenores, avisos e conselhos. Jerônimo de Estridão (347 – 420 d.C.) e Agostinho de Hipona (354 – 430 d.C.) também não ocultam os desafios dessa conciliação.

De fato, a poesia greco-latina era filtrada ao longo dos anos, apenas sobrava aquilo que soava belo. Entretanto, não se pode dizer o mesmo dos livros da Bíblia, os critérios são outros – apesar de também haver livros poéticos e apócrifos. A resolução, no mundo cristão, acaba sendo a aceitação da literatura pagã justificada por sua beleza, por um espírito universalista e por uma subordinação aos textos sagrados. E é aqui que está a ruptura que eu havia comentado. Se os textos homéricos carregavam aspectos cosmológicos e identitários, na era cristã, eles foram reduzidos a aspectos estéticos e morais. E apesar de haver uma abordagem semelhante entre os antigos filósofos gregos, eles ainda viviam aquela realidade, mesmo que fosse um mínimo, e boa parte dos seus sistemas de pensamento não conseguiam evitar a religião – em verdade, poucos tentavam isso.

Por mais que Homero fosse a base da educação no Império Bizantino, só nos é permitido dizer que aqueles escritos foram, no máximo, complementares à formação, pois apenas a fé seria o principal. Agora que expus de maneira breve como a literatura secular foi sendo tratada ao longo dos anos – usando os textos homéricos e os pagãos, em geral, como exemplo – temos as ferramentas suficientes para entender as razões tanto da literatura secular quanto da sagrada. Como a literatura sacra é, por assim dizer, a primeira, convém começar por ela.

Ao que parece, a literatura sacra teria três razões de ser. A primeira seria a revelação de verdades espirituais, tais como a origem do cosmos, o ente divino e a história do homem. A segunda seriam os preceitos comportamentais, isto é, os mandamentos, proibições, conselhos e exemplos. A terceira seria a devoção, com a apresentação de conceitos, fórmulas, ritos e datas. Estes três elementos seriam o esqueleto da relação entre criador e criado – que é resumida numa questão salvífica, de manutenção do cosmos ou, no mínimo, beatífica.

Essa concepção da religião parece ser confirmada por Simão (III a.C.), o justo, um dos sábios do judaísmo, que diz ser o mundo mantido em três bases: A Lei Divina, o culto e a caridade. De modo semelhante, há, no hinduísmo, os conceitos de bhakti ioga, ou o “ioga da devoção”; de jnana yoga, o que seria a via intelectual ao divino; e de karma yoga, que se fundamenta na ação.

Ora, se são estas as razões da literatura sagrada, a secular, como imitadora, argumentaria alguém, não poderia se assemelhar de maneira alguma ao aspecto revelativo, que seria o tronco da literatura sagrada. Pode-se afirmar, acredito, que tudo que revelativo é sagrado, e tudo que é sagrado é, em algum sentido, revelativo. Lembrando que o termo revelativo, aqui, não é tomado no sentido estrito de simplesmente “mostrar” como é a conclusão de um silogismo. Mas, em seu sentido amplo, de conhecimento que não necessitaria da captação da essência das coisas, nem de uma passagem pelos sentidos, mas seria concebido de maneira imediata, mística. Entretanto, a imitação a qual me refiro se daria por analogia apenas, isto é, por semelhança das partes. Portanto, se o centro da literatura sacra é a revelação, o centro da secular é a imitação da realidade. Como toda imitação humana é seletiva, ela é também, sempre, uma interpretação: e isso nos permite ver a realidade com outra perspectiva, o que é, curiosamente, agradável. É dessa maneira que se daria a imitação do aspecto revelativo.

Os outros dois aspectos do sagrado são o ético e o devocional – e aqui não me proponho a apontar uma hierarquia entre eles – seriam imitados pela literatura secular através da lição moral e da catarse, respectivamente. A moral na literatura imitaria o aspecto ético da religião através da criação de situações, através da imaginação, do questionamento e das convicções dos escritos. A catarse, na literatura, seria uma imitação da contemplação, do êxtase religioso, dos conceitos primordiais – aqueles que precedem todas as razões.

Aí estão as razões da literatura secular: a imitação da realidade, a moral e a catarse. Não digo que são exclusivos, assim como não o são aquelas apontadas para a literatura sacra. Aliás, o aspecto linguístico seria acidental; mas nunca desimportante. A métrica e a escolha das palavras são acidentais ao gênero da literatura, mas essenciais às obras em particular, pois a língua é o meio pelo qual as três principais razões vêm a existir no mundo. Perceba, também, que apenas a experiência da leitura pode servir às razões da literatura – um estudo do contexto é sempre importante, mas nunca primário, nunca essencial. Portanto, é apenas através da experiência honesta que se pode entender a literatura em seu princípio educativo, que eleva o espírito.

Referências

Manguel, Alberto. Homer’s The Iliad and The Odissey, A Biography. Inglaterra: Atlantic Books, 2007.
Fustel de Coulanges, Numa Denis. La Cité Antique. França: Editora Revista dos Tribunais, 1864.
Basílio de Cesareia. Discurso aos jovens, sobre como tirar proveito da literatura grega. Rónai, século IV d.C.
Pirkei Avot. Sidur Completo. Organização, edição e realização Jairo Fridlin. São Paulo: Sêfer, 1997.