A cidade virou a caixa-preta da civilização. O corpo da Terra não aguenta mais cidades, pelo menos não essas que se configuram como uma continuidade das pólis do mundo antigo, com gente protegida por muros, e o resto do lado de fora – que pode, inclusive, tanto ser bichos selvagens quanto indígenas, quilombolas, ribeirinhos, beiradeiros.
(Ailton Krenak)
Neste texto, proponho-me a falar sobre os sujeitos indígenas em contexto urbano e como o conceito ocidentalizado de autenticidade tenta (n)os rotular. Para iniciar esse papo acho importante lembrar que fazemos parte de uma sociedade colonizada e disciplinarizada pela cultura ocidentalizada juridicamente institucionalizada pela violência. Escrevo sem qualquer relação direta ou indireta com a ideia de paz de um possível Estado-nação. Ainda estamos em guerra! A partir daqui avançamos. Vem comigo.
Quem são os sujeitos indígenas em contexto urbano?
Em dado momento, fui convidada para falar sobre Literatura Indígena em uma aula do curso de Letras, em uma universidade pública no Brasil. No momento do debate, uma aluna me perguntou como ela poderia fazer para interagir com indígenas. Achei a pergunta curiosa e intrigante, afinal de contas, nós estávamos em plena interação e entendi que uma idealização sobre identidade étnica estava transbordando naquela pergunta, o que a fazia não perceber que já estava em pleno processo de interação direto e indireto, mas não achei que aquele era o momento para entrar na questão. Tentando responder à solicitação da aluna, compartilhei alguns perfis de parentes no Instagram, indiquei alguns canais no YouTube, além de indicar alguns livros e filmes produzidos por indígenas.
Na sequência, outra pessoa muito espantada declarou que jamais imaginou que povos indígenas estariam tão ativos nas redes sociais ou que produziam pesquisas, literatura e filmes, pois não sabia que havia tanta ‘tecnologia’ nas aldeias. Confesso que não é fácil escutar esse tipo de argumentação, mas compreendo nossos diferentes processos. Nossa sociedade iludida na construção da República Federativa do Brasil nega a existência de diferentes povos e, quando os afirma, os localiza em um passado e a condições de existência fixas, confundindo cultura e processos de pertencimento.
Os questionamentos e comentários dos alunos foram duros, mas não surpreendentes, afinal, o que se esperar do dispositivo de poder que é a universidade onde todas as suas pesquisas e incentivos à pesquisa são financiados pelo mesmo Estado que nega a existência de uma não nação plurinacional? A escritora Linda Smith, do povo Maori, quando denuncia a invenção do indígena autêntico, o vincula diretamente ao essencialismo e afirma que existe uma diferença de empregabilidade do termo a depender de que lugar do mundo nos encontramos; no eixo Sul, por exemplo, segundo a autora, existem diferentes usos. Para o movimento indígena, por exemplo, a ressignificação de autêntico fortalece nossos diferentes processos de resistência na manutenção de características que remontam ao tempo onde não havia o colonizador, nossas línguas, nossas tecnologias, nossa relação com a terra e outras características, mas para o Ocidente, o objetivo de enfatizar a questão da autenticidade é meramente para desqualificar a existência de povos indígenas. É exatamente dessa maneira que se utilizam da condição de autenticidade para justificar a Lei do Marco Temporal.
Refletindo essas circunstâncias e pensando na história da minha família e de muitas outras que vivem em contexto urbano, pesquisei autores indígenas que pudessem me ajudar a responder à pergunta: Quem são os sujeitos indígenas em contexto urbano? Das muitas respostas que encontrei, a que mais me surpreendeu, principalmente pela simplicidade e pela forma direta da declaração, foi a apresentada pelo professor Gersem Baniwa. Para ele, os sujeitos indígenas que vivem nas cidades são os mesmos que vivem nos territórios, com o mesmo sangue correndo em suas veias. Embora pareça óbvia, a resposta do professor Gersem desvela uma realidade negada principalmente pela ideia de autenticidade indígena.
Os sujeitos indígenas que vivem nas cidades possuem diferentes percursos que levaram à condição urbana, seja ela temporária ou permanente. As diferentes imposições sofridas pelos povos indígenas como consequência da colonização modificaram em diferentes aspectos suas relações com o meio. Um dos maiores motivos de saída dos povos indígenas de seus territórios nas últimas três décadas no Brasil foram acirradas pela fome, falta de condições apropriadas de vida e busca por condições mais favoráveis de saúde e educação. A cidade ainda é apresentada como uma alternativa para melhorar de vida. Mas cada realidade é historicizada e precisa ser compreendida em sua estrutura e acontecimento.
Movimento indígena e sua relação com povos indígenas em contexto urbano
A conjuntura nos mostra que os distanciamentos entre eles tendem a diminuir e que a importância de povos indígenas em contexto urbano tem sido favorável ao fortalecimento do movimento indígena. Mas não tenho intenção de desenvolver esses aspectos, apenas apresentar algumas observações.
O movimento indígena não pode mais negar que hoje existem diferentes povos indígenas em contexto urbano. A própria organização do movimento indígena desde a década de 70 obrigou diferentes lideranças e pessoas específicas a viverem em centros urbanos para que o movimento indígena ganhasse notoriedade e para que as reivindicações fossem atendidas. Estar na cidade nem sempre é desejo dos povos indígenas, mas se apresenta como uma urgência de articulação para o movimento indígena. Sair de sua comunidade de origem ou nascer na cidade pertencendo a um povo indígena não é nada fácil (sim, nós nascemos nas cidades também). Processos de violência, de racismo e de discriminação são estruturais e muitos são os motivos. Um deles está na periferia, local de ocupação de povos indígenas, negros, quilombolas e vulneráveis sociais. É esse o lugar destinado à maioria dos povos indígenas quando se está na cidade. Saúde e educação perdem suas prioridades de direitos e critérios diferenciados. Mas existe uma potencialidade nas cidades que me interessa nessa escrita.
Mesmo diante de todas as precariedades destinadas à maioria dos povos indígenas em contexto urbano, existe um fator que não pode ser capturado pelo Estado: a resistência. Ao estarem em contexto urbano, esses povos passaram a fazer uso dos recursos que são com maior frequência disponibilizados nos centros urbanos: a internet, os meios de transporte públicos e privados, as organizações sociais, os diálogos entre diferentes organizações e o acesso a parcerias e financiamentos.
Existe uma potência nos centros urbanos que provém da reunião desses diferentes povos que somam suas dificuldades com a necessidade de se autoafirmarem. Em lugares como o Bairro das Tribos, em Manaus, é comum você ouvir pessoas falando suas línguas nativas, usando, produzindo e vendendo roupas que valorizam suas características originárias, pessoas andando com pinturas corporais com tinta de jenipapo e urucum e se organizando em associações de mulheres indígenas, estudantes, professores, artesãos e muitas outras. Em muitas situações percebemos a reivindicação e práticas ritualísticas que já não eram mais praticadas com tanta frequência em suas comunidades de origem; em outras, observamos retomadas e fortalecimento de línguas indígenas com recursos de redes digitais.
As consequências dessas organizações são muitas, uma delas é a autodeclaração de jovens e adultos que antes silenciavam suas origens indígenas, mas ao se sentirem seguros em espaços de afirmação indígenas percebem que podem e devem se (re)afirmar enquanto sujeitos indígenas e passam a compreender que o contexto urbano, ao contrário do que sempre disseram e ensinaram, também é território indígena.
O que acontece quando diferentes povos indígenas se encontram nas cidades?
Reivindicar uma identidade étnica mesmo vivendo em contexto urbano é continuar a luta de nossos ancestrais por existência. Nossas identidades, no plural, não podem ser interpretadas a partir de um ideal indígena intemporal, onde os chamados ‘traços culturais’ são fixos; em outras palavras, os valores, as regras de conduta, a própria língua, práticas de vestuário e muitas outras características, entre elas as próprias características fenotípicas, não são fixas e presas no tempo, no caso do Brasil, no período colonial. Os processos estão em constante movimento e são transmitidos e modificados de geração para geração por processos de historicização para cada grupo em seu contexto cosmogônico, como consequências temos as modificações que resultam de ações e reações entre os diferentes grupos que também se encontram em contexto urbano.
Um dos resultados do encontro de diferentes povos em contexto urbano está na produção de materiais epistêmicos que servem como ferramentas de afirmação indígena. É nosso sentimento de pertencimento quem nos lembra que somos corpo-território e que seremos quem somos independentemente do lugar em que ocupamos.
Para entender um pouco mais sobre esses diferentes processos, apresento algumas obras que tratam de questões de pertencimento indígena. A primeira obra que indico chama-se Canumã: a travessia. O livro foi escrito por Ytanajé Cardoso, que pertence ao povo Munduruku do Amazonas. O romance narra a história de uma família que precisa sair de seu território em busca de melhores oportunidades de educação. Embora ficção, a história narra muito bem os processos violentos que os povos indígenas sofreram e continuam sofrendo.
Se você deseja compreender melhor os diferentes processos sofridos por mulheres indígenas no Brasil e suas diferentes relações com o contexto urbano, a obra Metade cara, metade máscara, de Eliane Potiguara, é um ótimo percurso a ser seguido. A obra apresenta poesias, lutas e resistências. Iniciando com texto que marca os processos de violência na separação de seu povo e finalizando com poesias de manifesto de resistência e autodeclaração de sua identidade indígena. Eliane Potiguara, além de iniciar a literatura indígena no Brasil, rompe um pseudo silêncio das dores das mulheres indígenas.
Outra obra que reforça a importância da memória ancestral e que a compara com um rio, é a obra O Lugar do saber, escrita por Márcia Wayna, do povo Kambeba. Fazendo parte da Série Saberes Tradicionais, a obra faz uso da poesia para nos lembrar de nossas memórias ancestrais e que nelas se encontram nossos saberes e quem somos. Descrevendo suas lembranças, Márcia Kambeba nos convida a mergulhar em nossos próprios rios para lembrarmos de quem somos.
As sugestões que apresento são apenas para despertar o interesse em conhecer outro lado da história. Uma história contada por povos indígenas. Não significa que não existam outras sugestões, ou que essas são as melhores e mais indicadas. Eu as indico como um primeiro passo a ser dado, mas pensando bem, vou fazer um exercício para tentar indicar leituras outras sempre que for possível, mas não esqueça que o caminho é todo seu.
Krenak denuncia que o corpo da Terra não sustenta mais esse modelo de cidade e nós, povos indígenas em contexto urbano, estamos continuamente tentando dar novos rumos para esses lugares na construção de laços e na aproximação entre nós e nossos parentes que vivem e se relacionam em contextos outros nem melhores e nem piores, pois não escolhemos onde nascer e não determinamos nossas histórias unicamente por nossos desejos em existir, somos o resultado de nossas intersecções e da historicização. É na compreensão dessa conjuntura que entendemos que a cidade também é território indígena! Vem ressignificar esse lugar com a gente. Bora?