É muito comum a ideia de que o indígena que fala a língua portuguesa, que usa celular, relógio, possui diploma universitário e dirige carro não é mais considerado indígena ou, pelo menos, não é mais considerado indígena de ‘verdade’, ‘autêntico’ ou ‘original’.
(Gersem Baniwa)
Ao iniciar sua fala no I Simpósio de Saúde Indígena realizado em Manaus pela Liga de Medicina da UFAM, Ivan Barreto, do povo Tukano, ao se apresentar brincou com a plateia falando: "Sou Ivan, do povo Tukano, e sou indígena de verdade!" Toda a plateia sorriu, inclusive eu, mas por trás de sua fala, Ivan enfrentava o grande preconceito sofrido por indígenas que vivem em cidades: a constante tentativa de invisibilidade de suas existências e a anulação sobre suas identidades.
A epígrafe que inicia esse debate é uma das muitas escritas de Gersem Baniwa sobre a questão do estereótipo indígena. A ideia de um modelo ideal indígena, além de ser real, é herdada ainda da colonização que estimula diferentes práticas preconceituosas e racistas como a sofrida por Vanda Ortega, do povo Witoto, ao ser acusada em um grande canal de rádio FM, no estado do Amazonas, de ser "índia fake" e é a mesma que estimula no Congresso Nacional de acusarem, constantemente, Célia Xakriabá e Sônia Guajajara de "indígenas cosplay". Mas de onde surgem ideias sobre ser ou não ser indígena de verdade?
Diferentes poderiam ser as intersecções para o desenvolvimento desse diálogo. Faço a opção por tratar dessa temática a partir da compreensão de correlações assimétricas de forças, em outras palavras, de exercícios de poder. De maneira sintética, desde a colonização no Brasil, o Estado em suas diferentes maneiras de se organizar (colonial, império, república) sempre objetivou a integralização dos povos indígenas, mesmo hoje com os direitos "garantidos" pela Constituição de 88, a prática continua sendo a de integralização dos povos indígenas. Como consequência utiliza diferentes dispositivos (universidades, mídia, religião, direito, entre outros) para apagar e universalizar identidades. O contexto urbano é o local onde mais violento se dá esse processo. Vem comigo!
Por que o Estado invisibiliza indígenas em contexto urbano?
Indígenas sempre tiveram relações com as cidades, até porque foram as cidades construídas em nossos territórios e não o contrário. Mulheres nos serviços domésticos e homens como mão de obra, fazendo parte na construção das grandes estruturas, mesmo assim, em seus diferentes dispositivos, o Estado sempre invisibilizou a participação desses sujeitos, a iniciar por seu pensamento colonialista impondo a ideia de que todo indígena é aquele do período da invasão, que anda nu e vive na floresta. A antropologia tradicional, a história, os estudos da linguagem e a literatura, por exemplo, contribuíram bastante para a cristalização e fixação do ideal indígena no passado, aquele que existe apenas como uma lembrança cultural. As consequências são catastróficas.
Outra razão está na ausência da atuação do Estado na garantia de direitos dos povos indígenas. Embora a Constituição de 88 garanta o direito dos povos indígenas, o Estado sequer consegue garantir os básicos para os territórios oficialmente demarcados. Reconhecer povos indígenas nas cidades, significaria garantia de direitos, em outras palavras, demanda aumento de recursos, pessoas e dinheiro por parte do Estado.
Além desse contexto, o Estado inculca na sociedade que existe uma diferença entre os indígenas em contexto urbano e aqueles que vivem nos territórios para dividir o próprio movimento indígena, enfraquecendo a luta coletiva e fortalecendo o Estado. Embora não tenha intenção de desenvolver melhor esse tema nessa escrita, insisto em lembrar que desde o período da instalação das missões religiosas no Brasil, existe uma concentrada força por parte do Estado na tentativa de mudar o modo de vida dos povos indígenas para que assim, o poder colonizador, possa confundir os próprios sujeitos e se apropriar de suas terras, culturas e tecnologias, ao acaso não foi essa a intenção do Estatuto do Índio, quando o mesmo alegava a incapacidade dos povos indígenas em gerir a sua própria existência nos obrigando a viver em regime de tutela a não ser que alegássemos não sermos mais indígenas? O mesmo processo de apagamento de identidades se repetiu no estabelecimento de vilas e na aplicabilidade do Diretório dos Índios ou ainda no uso de diferentes conceitos na tentativa de dividir os indígenas, como por exemplo, "negros da terra", "silvícolas", "vassalos", "índios destribalizados", "índios mansos" e "bravos", entre outros. Para uma melhor leitura, sugiro o texto "A demanda da Ancestralidade" escrito por mim nesse mesmo espaço, em edições anteriores.
Além do Estado, entre os próprios indígenas tensões em relação aos indígenas que vivem em território e aqueles que vivem em contexto urbano precisam ser consideradas. Influenciados pelas mesmas concepções colonialistas e racistas impostas pelo Estado por meio de seus diferentes dispositivos, o movimento indígena percebe os indígenas em contexto urbano como concorrentes, pois acreditam que seus "poucos" direitos podem ser diminuídos uma vez que serão divididos com os indígenas de contexto urbano. Mas o grande projeto que está por trás de todo esse discurso que busca uma legitimidade indígena, está no fim de todos os povos indígenas apregoado desde a colonização, independente de estarem ou não em seus territórios. Um exemplo desse processo foi desnudado pela pandemia Covid-19.
Em retrospectiva sintética, com dados e informações organizadas pelo Instituto Sócio Ambiental – ISA, podemos observar as diferentes ações de invisibilidade e omissões praticadas pelo Estado durante a pandemia Covid-19 em relação aos povos indígenas. De acordo com o ISA, três ações foram as mais comuns: nas aldeias, entrada de vírus via profissionais da saúde, garimpeiros e grileiros; aumento da violência, garimpo e grilagem durante a pandemia; e nas cidades, negligenciamento de atendimento diferenciado. Mesmo com a pandemia sendo deflagrada em território nacional, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI, no início de 2020 cortou as cestas básicas em territórios indígenas, como consequência, além do aumento da violência, deixou mais vulneráveis os povos ao vírus. Não respeitando as particularidades culturais dos diferentes povos indígenas, o primeiro informe disponibilizado pela Secretaria de Saúde Indígena - SESAI expôs indígenas ao vírus quando recomendou isolamento domiciliar, pois muitos povos vivem em casas compartilhadas; o próprio plano de contingência, elaborado pela mesma secretaria, desvelou a visão genérica e descaso sobre os povos, pois aplicou as medidas da Anvisa sem levar em consideração as realidades e particularidades dos povos, além da total negligência da SESAI sobre a importância da realização de testagem.
Nas aldeias/comunidades, assim como nas cidades, foram os próprios indígenas que iniciaram as ações de contenção da contaminação do vírus e de tratamento dos já infectados, uma vez que o Ministério da Saúde demorou para agir. Nas cidades, a SESAI negou qualquer atendimento para indígenas, em outras palavras, cerca de 324,8 mil indígenas que vivem em cidades foram excluídos, mesmo com as denúncias vindas pelo Ministério Público Federal e pelas organizações indígenas exigindo que todos os indígenas fossem atendidos. Todos esses dados são apenas alguns das diferentes ações executadas pelo Estado na omissão de povos indígenas, estejam eles vivendo em contexto urbano ou nas aldeias/comunidades. Como podemos perceber, a divisão entre povos indígenas em contexto urbano e em aldeias/comunidades apenas beneficia o Estado.
Quais as consequências da invisibilização dos povos indígenas nas cidades?
Tentando responder a essa pergunta e seguindo a exposição do questionamento anterior trago para a centralidade dessa escrita a pandemia Covid-19 e o escancaramento das práticas colonialistas, preconceituosas e racistas acometidas pelo Estado contra os povos indígenas em contexto urbano na cidade de Manaus. O censo de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, apontou Manaus como a cidade brasileira com a maior concentração de povos indígenas, o que não é surpresa uma vez que dados da Fundação de Vigilância em Saúde, em 2021, apresentaram resultados alarmantes quando do monitoramento da Covid-19 em indígenas no Estado. Naquele ano, a cidade de Manaus apontou uma das taxas mais altas de morte por covid entre indígenas.
No Parque das Tribos, o primeiro bairro indígena de Manaus, localizado no bairro Tarumã, zona periférica de Manaus, o descaso para com a população foi gigantesco, a ponto de a própria comunidade desenvolver mecanismos para tentar diminuir a contaminação do vírus, além de cuidar de seus doentes, uma vez que nem a SESAI, nem o Sistema Único de Saúde – SUS se responsabilizaram pela referida população. Em depoimento prestado ao Seminário Virtual Violações de Direitos e Genocídio no Amazonas, Vanda Ortega, do povo Witoto, moradora do Parque das Tribos, afirmou que quando ligavam (os moradores do Parque) para solicitar ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU, tinham seus pedidos negados. Se afirmassem que eram indígenas, diziam que deveriam procurar a SESAI, mas ao procurar atendimento diferenciado na SESAI, ouviam que por estarem na cidade deveriam procurar atendimento no SUS e, dessa maneira, ninguém prestava atendimento ao Parque das Tribos. Como consequência, muitos indígenas tombaram, mas sem serem reconhecidos como indígenas acabaram sendo enterrados como pardos. Ser enterrado como "pardo" significa o mesmo que ser enterrado como indigente.
Sobre essa questão, Vanda Witoto, em fala publicada pelo jornal Amazônia Real, em 2022, afirmou que: "Eu tenho medo de uma coisa: se eu vier a morrer, que não me reconheçam enquanto indígena nem na minha morte. Eu não tenho medo de morrer pelo vírus, eu acho que nenhum parente. A grande questão nossa não é lamentar essa morte que se foi, mas é você morrer com essa identidade negada". Em depoimento para o mesmo jornal, Marcivana Sateré-Mawé, uma das coordenadoras da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno – COPIME, afirmou que "Os indígenas de Manaus são totalmente descobertos pela política de saúde e temos sofrido muito mais com essa pandemia. Estamos vendo o quanto somos excluídos e invisibilizados. Indígena é indígena em qualquer lugar, não importa onde esteja".
Além do Parque das Tribos e de dados da COPIME, o depoimento para o mesmo jornal feito por Regina Sateré-Mawé, da Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé – AMISM, localizada no bairro da Compensa, em Manaus, denuncia o descaso e invisibilização da presença de povos indígenas na cidade desde tempos anteriores ao COVID-19. Segundo Dona Regina, "Nós lutamos por uma saúde diferenciada e uma educação diferenciada. Eu vejo que aqui na cidade nada foi feito para nós, povos indígenas. Não temos um espaço para apresentar nossos artesanatos, não temos um centro de convivência dos povos indígenas que seja nosso de verdade. Precisamos ter professores indígenas, uma sala de aula para ensinar nossa língua materna para os nossos filhos que nascem aqui. Manaus é uma cidade que é um 'malocão' (lugar que abriga famílias indígenas), onde se concentram muitos povos que saíram das aldeias, nós estamos invisíveis! Em todo bairro de Manaus, nós temos indígenas, mas estamos invisíveis".
Ao contrário do que esperava o Estado com seu projeto de invisibilidade da presença dos povos indígenas na cidade, o contexto urbano se apresentou como condição de fortalecimento para esses sujeitos que ao viverem em bairros/comunidades, ao se organizarem em associações, movimentos e coletivos potencializaram suas relações socioculturais e políticas. Em muitos casos, a presença desses sujeitos em contexto urbano despertou movimentos de retomadas de práticas culturais que já não eram tão praticadas em suas aldeias e até mesmo questões vinculadas ao fortalecimento e retomada das línguas indígenas estão sendo intensificadas como práticas de autoafirmação. As próprias condições de existência que são características dos centros urbanos passaram a ser utilizadas como ferramentas de articulação entre esses diferentes povos indígenas que se encontram nas cidades. A internet, por exemplo, passou a interligar sujeitos indígenas e a partir dela diferentes denúncias e mobilizações foram possíveis de ser realizadas mesmo em tempos de pandemia, como por exemplo, a venda de máscaras com grafismos indígenas na página do Instagram da Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé.
Muito ainda precisa ser debatido sobre esse tema e te convido para continuar comigo nesse percurso. Mas não esqueça que essa escrita é apenas uma das muitas outras leituras possíveis e que aqui não me interessa esgotar o assunto, nem apresentar verdades concretas. Vem comigo para a parte 2 do texto? Te aguardo. Xipat!