Aqui, na Praia da Figueira, em pleno barlavento Algarvio, contemplo o mar calmo do início da tarde e deixo o sol entrar por todas as portas e janelas que em mim tenho abertas. Sem hora marcada de regresso a casa, fundo o corpo nu na areia fina e quente de Fevereiro. Este Inverno surreal segue nos +20ºC. Deixo-me estar, enquanto algumas gaivotas deslizam displicentes sobre as águas calmas – Este calor anormal é mais uma prova do que está a acontecer com o Aquecimento Global – murmuro para mim mesmo. E uma sucessão de imagens percorre-me a mente, a uma velocidade vertiginosa. Os Polos em desgelo, colónias de Pinguins Imperador sem neve onde chocar os ovos, ursos polares famintos e outros esqueléticos tombados sem vida sobre o que resta do seu habitat natural, chuvas torrenciais, cheias, ciclones, vastos incêndios e nevões. Tudo se sucede como se o planeta se estivesse a virar do avesso ou a cuspir bolas de pêlo como um gato.
Sinto o coração agitar e respiro fundo para que a respiração volte ao normal. Não deixo que nenhuma memória me tire da minha paz. Assim, atento no mar de pequena vaga e as suas ondas sucessivas, pequenas e espumosas, a enrolar na areia fina e lisa, iguais a uma classe de Judo para crianças. E de repente, os meninos ali estão de quimono branco, perfilados como pequenos japoneses, treinando cada movimento em câmara lenta, para que o corpo memorize a cambalhota. E seguem enrolando como aquelas ondas brancas. Hipnotizados com a perfeição das cambalhotas, os meus olhos pensam – Porque será que nunca nos ensinaram a cair bem, a enrolar e a levantar com as nossas emoções? Poucos foram os pais e os professores que explicaram como o fazer. E para furar ondas de conflitos? Surfar problemas quando estão em alta? Não perder o equilíbrio, o controlo, nem a destreza para os resolver em tranquilidade? Por falta dessas explicações e treino, muitos sonhos se quebraram e os traumas deixaram marcas que ficaram gravadas como tatuagens dolorosas e invisíveis, nos arredores da Alma – Aprender a cair bem e levantar sem Medo de nenhuma situação da Vida, deveria ter sido a causa primeira e suficiente para se ir à escola.
Se tudo o que aprendemos tivesse sido adquirido com as ferramentas certas e o treino adequado, onde estaríamos agora? Em vez disso, seguimos no ramerrame das aulas com respostas mastigadas, direitinhas, lavadinhas e penteadas como convém a quem manda nisto tudo. Hoje, os questionários de cruz impossibilitam de se formular um raciocínio ou usar uma boa expressão escrita da Língua Portuguesa. É o que temos. De qualquer forma, nunca nenhum governo quis ser posto em causa por questionamentos inteligentes e fora da caixa. Na Grécia Clássica, a função do professor era responder à curiosidade dos alunos. Quanto mais perguntassem, mais respostas teriam, no jogo do aprofundar do Conhecimento. E devia ser fantástico ter a sorte de ter como Mestres, os grandes pensadores que punham em perspectiva as respostas para que os alunos chegassem mais longe. Hoje em dia, a avaliação dos alunos não é feita pelo seu potencial, mas por aquilo que o sistema espera deles. E isso é formatado, enquadrado e espremido para levar a resposta ao que convém. Tirar boas notas não deveria ser nunca a meta do aluno, porque a Vida nunca foi uma sucessão de caixas com fórmulas matemáticas previsíveis, porque até elas são possíveis de ser revogáveis por outras mais recentes, testadas pela moderna Ciência. Logo, nada é definitivo! A ciência da Vida é maior do que a vida da Ciência. Começar um argumento com - “É assim!”- afirmação completamente despropositada, já que tudo pode ser também - “Assim e assado” ou “Assim ou assado”- dependendo do ponto de vista. Ter Informação, não chega. É preciso fazer a sua digestão. A isso se pode chamar de Cultura, ou seja, a resposta interior que se dá, a tudo o que se apreendeu do Conhecimento, esse universo tão vasto que nenhum humano ou IA (Inteligência Artificial) consegue abarcar.
Desde muito pequeno estudei no Liceu Francês de Lisboa. No início dos anos 70, lembro-me de ter tido na Primária, Cálculo Mental, Redação e Recitação, estimulantes do cérebro. Era como um ginásio mental onde os neurónios aprendiam a gerar mais Sinapses, acrescentando pontos de vista e apurando sensibilidades. Hoje, os testes de cruz, “Sim e Não”, fazem com que a aprendizagem se aproxime ao que é um jogo de computador. Não existindo espaço para o “Talvez”. A Realidade Virtual ganhou um espaço inimaginável ajudada pelos pais, desde que começaram a comprar aos filhos as famosas PlayStation. A rotina e o cansaço pela acumulação de empregos, fez com que os pais chegassem exaustos ao fim do mês. Trabalhar para pagar contas, tornou-se um objectivo. Chegados a casa, desfeitos por mais um dia de trabalho, já só quiseram que os filhos os deixassem em paz. E as PlayStations tornaram-se o substituto do acompanhamento que grande parte dos pais deixaram de dar, fechando as crianças nos seus quartos, desafiados pela destreza digital, caso quisessem vencer.
E quem não quer? Com uma multiplicidade de Jogos onde a Destruição e a Morte são por vezes o objectivo, os jovens com armas virtuais foram-se entretendo a matar Índios como se fossem coelhos, Extraterrestres repugnantes, Fantasmas assustadores, Terroristas Árabes, Rebeldes Comunistas, Negros canibais e todo o tipo de criaturas que os criadores dos jogos associaram ao Maligno, formatando mentalidades pela repetição. Dentro do quarto, com a Morte à distância de um dedo, uma grande percentagem da juventude mundial, perdeu a noção do valor da Vida, como se ela fosse também descartável, um Fast Food de consumo rápido. Não é por acaso que grande parte dos jovens já não consegue distinguir a diferença entre boa comida caseira e um hambúrguer industrial. As campanhas de Fast Food tornaram-se moda e engoliram-nos. A necessidade de ser aceite pelo grupo, levou os jovens a acreditar na qualidade deplorável da comida plastificada e a aprender nas Redes Sociais o que é certo ou errado em relação à maioria das coisas. As Redes Sociais são um novo e perigoso conceito de Escola e Universidade.
O hábito leva os olhos e os ouvidos a acreditarem em qualquer verdade. É só uma questão de tempo. A Informação dada pela Comunicação Social é um bom exemplo disso. A repetição exaustiva de uma mesma notícia, conduz sempre à exaustão. E chega aquele momento em que já só apetece mudar de canal, virar a página do jornal, semanário ou revista. Mas o hábito pode ir tão longe quanto se quiser. Gente que só fala aos gritos, que usa o insulto como cartão de visita, é a mesma que suja as ruas, que vomita sobre os outros e o Ambiente, o seu mal-estar. E isto passa em todas as classes sociais, porque o Amor pode faltar em todas elas. Ao contrário do Sexo, o Amor não é um bem que se compre. O Amor é como uma planta que deve ser cuidada diariamente. É o trabalho de uma vida.
Os olhos e os ouvidos habituam-se a tudo, passando a ser regra, o Normal. Mas não é! Os olhos e os ouvidos das crianças aprendem com os pais. Se não houver respeito em casa, num espaço comunitário, seja ele um jardim, rua, transporte colectivo, se o que ouvem falar é da boca para fora, sem respeito à língua que comunicam, então tudo se arrasta para o abismo do “não interessa”. E em boa da verdade, ao seguir por essa via, tudo deixa de ser importante. Daí surgirem casos de jovens que entraram armados nas escolas, a matar colegas e professores. Bom-Senso, Respeito pelo Outro, Direitos Humanos, são coisas que nem nunca ouviram falar. O que é isso comparado ao poder de uma arma de fogo na mão? Melhor do que as armas virtuais da PlayStation.
Lentamente, passa uma nuvem sobre a minha cabeça, daquelas brancas e gordas como Farófias, o doce português que sempre me fez recordar a infância e a cozinha onde a mãe as preparava com esmero. No ar ficava um cheiro doce a leite quente, casca de limão, Baunilha e canela. Como a felicidade da gulodice me podia satisfazer sem que precisasse de mais nada. E preso à ideia das Farófias, começou a nascer-me um sorriso na Alma, a querer espelhar-se no meu olhar. Só os grãos de areia à minha frente o conseguiam ver. Respiro fundo. Olho em meu redor e reparo como a praia se foi salpicando de pequenos grupos de estrangeiros. No Verão, os Turistas são uma invasão real, do tipo das grandes colónias de focas e pinguins, gritando bem alto e em diferentes idiomas, o seu direito de ali estar, como se o mundo lhes pertencesse. A psicologia do Mau Turista é tão invasiva e corrosiva, que chego a dar razão ao Mr. Smith do filme Matrix, quando se referia a nós, humanos, como uma praga que destrói tudo por onde passa. A má-educação generalizada tornou-se o Mote, que foi passando de geração em geração, por pais mal-educados, sem autoestima nem respeito pelo outro, sem referências. Na Escola, o Professor perdeu o estatuto, poder e respeito. Inverteu-se a pirâmide, ficando o Aluno, como dono e senhor da sala de aula. E isso aconteceu por todo o mundo, como se fosse um plano orquestrado.
Curioso, não bastava já a imposição de um Acordo Ortográfico que veio simplificar (a que preço) a Língua Portuguesa, podando as raízes da língua até a deixar sem grande sentido, para agora se viver na anarquia das escolas. A expressão oral e escrita dos alunos é cada vez mais reduzida. Não sei quem foi que lhes explicou que podiam compreender a Vida sem saber de onde vieram. A História, a Língua, a Filosofia e a Arte, são tidas como maçadas que nada acrescentam, a não ser o aborrecimento de ter de as estudar. Assim, a Curiosidade fica cingida ao Futuro, o Desconhecido. Mas o Passado, que é outro grande Desconhecido! Do Futuro nada se sabe e do Passado, não se quer saber. Os jovens ficam então presos ao Presente. É claro que se pode viver intensamente o Agora. Daí haver activistas que procuram transformar o planeta num grande estádio de Desportos Radicais. Parece-me bem. E depois? A Adrenalina tornou-se também num Fast Food, para compensar os neurónios não estimulados pelo Conhecimento. E é isso que parte dos jovens de hoje tem vindo a fazer: a superação física. A máxima “Mente sã em corpo são” deixou de fazer sentido. “Corpo são” e possivelmente musculoso, basta para manter o Ego entretido. E é para este Deserto emocionalmente desidratado, que se caminha a passos largos. Sem consciência do Passado e ignorando o Futuro, não existe grande escolha.
E agora? O que fazer com toda a Informação e Herança Cultural? Deixa-se esse trabalho para a IA (Inteligência Artificial)? Ela que armazene tudo? Cuidado porque assim fica com o bolo todo. E já agora, porque não dar-lhe também a gestão e exploração das escolas e dos transportes públicos? O funcionamento de fábricas, empresas e hospitais? A gestão virtual dos Governos? Sim, sermos governados por máquinas, talvez não seja má ideia, dependendo de quem as tenha programado? Poupava-se imenso em salários. A mão de obra gratuita proporcionada pelos drones, cumpriria a função dos Novos Escravos, deixando a Humanidade com Tempos Livres.
Sim, seria esse o nome dado ao novo tipo de Desemprego - Tempos Livres - e sem salário nem ocupação, grande parte da Humanidade entraria em paranoia, que hoje se chama Desajuste Social. Os que enlouquecessem, transtornos do foro psíquico, seriam entregues aos cuidados de Drones-Enfermeiros nos manicómios (espaços de reprogramação para a inserção social) e depois transformados em carne para Hambúrgueres, quando começassem a dar demasiado trabalho. Os suicidas ou desintegrados seriam estimulados até ao limite, por haver falta de espaço no planeta. Para todos os outros, os covardes que insistissem em sobreviver, haveria pastilhas para os acalmar, num Zombie-Style muito Fashion. É que o Medo quando transformado em Pânico, pode gerar motins, pondo em perigo o bom funcionamento das sociedades geridas por dinheiro. E isso não é de todo aconselhável!
“Que a ignorância seja o Limite e os neurónios não se toquem!” - Que todos fiquem fechados em casa como no Confinamento que passámos. Para muitos foi um ano e meio a bater com a cabeça nas paredes! Mesmo para aqueles que diziam ter uma pilha de livros para ler ao lado da cama, armários para arrumar, dormir ou dezenas de telefonemas e videochamadas para fazer. Falácias! Ler, arrumar, comunicar, são trabalhos essenciais do foro interior e ninguém esteve para isso. A Preguiça venceu, como sempre acontece. Ao menor safanão, o Homem perdeu o equilíbrio e afundou-se na Culpa (sua e dos outros, tanto faz) para não fazer a Mudança necessária e crescer. E assim a História se repete, com a Memória cada vez mais curta e não se saindo do mesmo sítio. Toda e qualquer Mudança custa, obrigando a um imenso esforço pessoal e colectivo. Entrar por essa via, implica o abrir caminho ao Desconhecido e ao Novo. E quem estará disposto a isso? Seguir no “Deixa Andar”, empurrando a vida com a barriga, tem sido o lema.
O sol baixou um pouco e a sua luz ficou mais branca. Sinto um arrepio de frio. É hora de voltar a casa. Avanço sobre a areia fina e húmida e inicio uma longa caminhada de regresso ao carro. Tanta confusão por nós criada, enquanto a Natureza segue confiante no seu processo contínuo de reconstrução e mudança. A Terra está em constante transformação, excepto o nosso Ego, que acredita que tudo tem de seguir cristalizado como está, melhor dizendo, sem outra solução. É este o ruído da Humanidade no meio de uma imensidão absurda de galáxias.
Começa a vir a fome e eu noto a sua presença inquieta. Mais meia-hora e estará saciada – penso eu. Se fosse assim tão fácil saciar cada uma das nossas necessidades, seria maravilhoso. Mas se pensarmos que a Alma não tem fome, sede, frio ou calor, que poder estamos permanentemente a dar ao Ego?