Para muitas pessoas, a lista de metas para 2024 já falhou.
Na verdade, apesar de as fazer apenas há dois anos, sempre tive listas desde coisas quotidianas a sonhos possíveis e, talvez, impossíveis.
Na verdade e apesar de toda a excitação com a ideia de “para o ano é que vai ser”, é normal descumprirmos as nossas promessas, ou pelo menos parte delas. Contudo, diferente do que poderemos pensar, não há absolutamente nada de vergonhoso nisso.
Há um hiato, esperado, entre o que planeamos e o que de facto realizaremos e há um nome para esse vazio, entre o que consideramos como um bem a ser feito, e nossa ação tosca, muitas vezes, em sentido contrário ao que pretendíamos – acrasia.
Independente do dicionário, a palavra “acrasia”, define-se como: a ação de uma pessoa que contraria seu melhor juízo sobre o que fazer em determinada situação, sendo fácil adjetivar esta “condição” como “fraqueza” ou ausência de “força de vontade” – mas, na verdade, esta definição é demasiado simplista.
Filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, cada um à sua maneira, fizeram formulações sobre a acrasia: Como é que é possível alguém agir de forma diferente daquilo que, racionalmente, já tinha decidido o que era o melhor para si?
O que os grandes pensadores questionavam, na Grécia Antiga, é o ponto de interrogação banal nos nossos dias, nos mais diversos exemplos quotidianos, por exemplo: porque é que alguém decide que o melhor para si é alimentar-se melhor, mas mesmo assim continua a comer fast food? Por que alguém decide que o melhor para si é movimentar o corpo e ser menos sedentário, mas continua a ficar sentado no sofá a ver televisão? Porque é que apesar da consciência e da promessa para diminuir o consumo de comida processada, algumas pessoas ignoram a sua própria promessa?
Esta nossa incoerência interna, a acrasia, foi estudada há milênios por filósofos, mas só no século XX, com o desenvolvimento da psicologia e das neurociências, é que o fenômeno da acrasia pôde, enfim, ser mais bem compreendido.
É um assunto bastante complexo, mas deixo aqui um brevíssimo resumo, apenas para uma melhor compreensão.
Nós, seres humanos, temos traços que são relativamente constantes, sólidos, traços da nossa personalidade que, talvez, já fossem percetíveis desde a adolescência e, alguns, até mesmo na infância.
Entretanto, apesar dessa constância que nos habita, é consenso, nas mais diversas correntes da Psicologia, que nós não somos tão constantes como pensamos, não somos seres “cristalizados”, há um dinamismo na nossa forma de ser e de estar no mundo, somos impactados pelo ambiente, pelas nossas emoções, pelas circunstâncias às quais somos submetidos, e, pelas contingências momentâneas.
A compreensão que somos seres porosos, uns mais que outros, ao que nos circunda, ainda que momentaneamente, significa entender que o estado atual, quando planeamos os nossos objetivos e metas, sofrerá alterações no futuro.
A motivação com a qual escrevemos a nossa "lista do Ano Novo" foi escrita sob um estado de humor específico, num contexto específico e, provavelmente, não ficará intacta – nem mesmo a curto prazo.
Para além das nossas flutuações internas, esperadas, ao longo do ano, muitas vezes, o nosso planeamento é falho, não pondera possíveis eventualidades, ignora que não somos seres 100% racionais e superestima a tal “força de vontade”.
É interessante que possamos compreender que não há nada de sagrado e 100% racional nas metas que escolhemos para o nosso Ano Novo.
As metas servem como um norte para aquele momento no qual as escrevemos, o que não significa que não sofrerão alterações.
Algumas de nossas metas vão se tornar impossíveis de serem atingidas (por uma eventualidade imprevista, por exemplo), outras serão simplesmente esquecidas, e, outras, talvez nunca devessem ter sido escritas na nossa lista…
A acrasia pode ser avassaladora, e com ela trazer grande sofrimento psíquico, sentimento de culpa, impotência e, somar essa dor acrática à interpretação simplista de que o não cumprimento das metas de Ano Novo se resume à falta de força de vontade. Isso é, no mínimo, moralmente e emocionalmente devastador. Desconsiderar a nossa acrasia é, acima de tudo, ignorância, uma vez que, com isso, estamos a rejeitar a própria natureza humana.
E com isto, resta-me desejar que sejam gentis convosco próprios, e, um bom ano de 2024.