Quando encontramos personagens históricos complexos que viveram em momentos de grandes mudanças de paradigmas, deparamo-nos com situações, no mínimo, instigantes. A biografia desses indivíduos e sua trajetória particular – seja de um sujeito anônimo ou renomado – pode se tornar um ponto de partida para a compreensão da trama sociocultural de seu tempo.
Peter Wilhelm Lund (1808-1880) é um desses sujeitos históricos capazes de nos levar a um mergulho na dinâmica realidade de sua época e em suas próprias contradições humanas. Isso está refletido nas múltiplas e dicotômicas imagens construídas a seu respeito.
Alguns autores apresentam Peter Lund como um homem sábio, conectado com o que ocorria no mundo e com a comunidade científica; autor de teorias modernas e revolucionárias sobre temas polêmicos da origem do homem e ocupação humana da América; um cidadão sociável que interagia com a população e contribuía com a cidade que o acolheu. Já outros autores, entretanto, o descrevem como um cientista ultrapassado; um eremita isolado em uma pequena cidade de Minas Gerais; longe da comunidade científico-cultural internacional, atrelado a teorias ultrapassadas; incapaz de acompanhar as mudanças de sua época; visto como um cidadão excêntrico e cheio de manias.
Mas quem foi esse homem capaz de abarcar tantas imagens antagônicas a seu respeito? Na verdade, Lund se encaixa em todas essas imagens, em momentos diferentes de sua vida. Ele foi um homem de grandes rupturas e de grandes mudanças em sua trajetória e pensamento, assim como foi o momento histórico em que viveu. Não é possível fixá-lo em apenas um lado dessas imagens sem perder toda a complexidade de sua personalidade. E aí está sua riqueza, pois demonstra sua ousadia para romper e mudar completamente sua vida e atividade profissional, demonstrando uma capacidade ímpar de autocrítica e transformação.
Peter Wilhelm Lund nasceu na Dinamarca em 1801 em uma família de ricos comerciantes. Rompendo a tradição familiar, tornou-se o primeiro membro a seguir a carreira acadêmica e científica. Temos aqui a primeira ruptura, o primeiro corte numa trajetória profissional que parecia previsível, confortável e seguida pelos seus irmãos. O fato de pertencer a uma família abastada foi importante em sua carreira, pois possibilitou a maior parte de suas pesquisas. Apesar de ter um pequeno financiamento do Rei da Dinamarca, esse nunca foi suficiente.
Lund graduou-se em Medicina e Letras pela Universidade de Copenhague, curso bastante amplo que lhe dava a oportunidade de seguir uma carreira como médico ou naturalista. Na universidade, Lund cursou disciplinas de Desenho, Filosofia, Biologia, Botânica, Geologia, anatomia e outras tantas que lhe proporcionaram um grande leque de atuação profissional.
Chegou a exercer a atividade médica na Europa, mas desde a infância viu-se seduzido pelo estudo da natureza. Em 1824, mais uma vez optou pelo caminho mais incerto e desafiador. Abdicou da segura e estável carreira médica logo após se graduar e optou pela tentadora e imprevisível atividade de naturalista, indo a campo investigar sobre a natureza e origem da vida.
Em 1825, fez o que muitos naturalistas sonhavam, mas poucos tiveram ousadia e condições financeiras para fazê-lo. Lund embarcou para o Brasil e aqui permaneceu até 1829, pesquisando nossa fauna e flora. Saiu da zona de conforto dos Gabinetes de História Natural da Europa para desbravar o desconhecido, desconfortável e perigoso cenário natural da América. A Medicina passou a ser apenas uma atividade secundária para Peter Lund. No Brasil, chegou a atender à população como médico, mas de maneira esporádica e apenas quando não havia quem o fizesse.
O naturalista dinamarquês não veio ao Brasil por acaso. Após a vinda da corte portuguesa para a América em 1808, muitos cientistas estrangeiros desbravaram a riqueza natural brasileira. Com 24 anos, Lund fez parte desse contingente de naturalistas e, em sua primeira estada no Brasil (1825-1829), concentrou-se nos estudos botânicos e zoológicos nos arredores do Rio de Janeiro. Suas pesquisas sobre as formigas viraram sua tese de Doutorado.
Ao retornar à Europa, Lund publicou seus trabalhos no Brasil, adquiriu o título de Doutor na Universidade de Kiev e realizou uma longa viagem pelos centros científico-culturais europeus, fazendo contato com grandes nomes da ciência mundial (Humbold, Cuvier, Ampere, ...). Peter Lund inseriu-se na comunidade científica mundial e poderia ter se tornado um cientista respeitado de qualquer universidade europeia. Havia acumulado uma rica coleção no Brasil que o possibilitaria trabalhar com esse material por anos. Chegou a considerar fixar-se em Paris, mas decidiu retornar à América em 1833 em busca de respostas a questionamentos científicos que o instigavam.
Em solo brasileiro, associou-se ao botânico alemão Ludwig Riedel (1790-1861) que se encontrava em expedição pelo país e percorreram juntos alguns estados, entre 1833 e 1834. Quando se encontravam na cidade mineira de Curvelo, uma surpreendente coincidência mudou novamente os planos de Peter Lund. Um outro Peter, também dinamarquês, cruzou seu caminho – Peter Claussen.
Claussen era proprietário da fazenda Porteirinhas e explorava as cavernas da região, retirando e vendendo os fósseis de ossadas antigas para museus europeus. Ao ser apresentado às belíssimas cavernas calcárias e aos fósseis nelas preservados, Lund percebeu a riqueza científica que representavam. Já tinha visitado cavernas na Europa e sabia de suas potencialidades, pois conhecia o trabalho desenvolvido por Georges Cuvier e outros cientistas a partir dos fósseis.
No entanto, como havia feito um planejamento com Riedel, Peter Lund seguiu viagem até Ouro Preto, onde o alemão adoeceu e preferiu retornar ao Rio de Janeiro. Lund, então, voltou à Curvelo e às cavernas que tanto o fascinaram. Quando entrou pela primeira vez na Gruta de Maquiné em Cordisburgo, próximo à Curvelo, registrou o impacto que as cavernas lhe provocavam:
Meus companheiros permaneceram durante muito tempo mudos à entrada deste templo; depois, involuntariamente, se ajoelharam e, persignando-se exclamaram, diversas vezes: ‘Milagre! Deus é grande!’. Foi-me impossível dissuadi-los da ideia de que esse templo devia servir de moradia a Nosso Senhor. Quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte.
Nesse momento, Lund muda novamente seus planos, fixa-se em Minas Gerais, deixa de lado os estudos de botânica e zoologia e passa a se dedicar aos estudos sobre as cavernas e os fósseis nelas encontrados. Foi o primeiro cientista a fazer um estudo sistemático e contínuo sobre a formação das cavernas e sobre os fósseis nelas encontrados. Portanto, é conhecido como o Pai da Paleontologia Brasileira. Foi um trabalho inovador e desbravador, sem interlocutores no Brasil.
Lund permaneceu um tempo em Curvelo na fazenda de Claussen, onde conheceu o norueguês Peter Andreas Brandt. Mas após desentendimentos com Claussen que os tornaram inimigos e concorrentes na comunidade científica por toda a vida, Lund partiu de Curvelo para explorar cavernas em outros lugares. Andreas Brandt o acompanhou.
O norueguês teve um papel importante na vida de Peter Lund como amigo, auxiliar e desenhista. Ainda não havia a fotografia e Brandt tinha a fundamental tarefa de desenhar as ossadas encontradas, os cenários visitados e de mapear as cavernas exploradas. Não há como pensar no trabalho científico de Lund sem as ilustrações de Brandt, mas ele o auxiliava também em muitas outras tarefas como leituras, correspondências, visitas, escavações, enfermidades.
Lund e Brandt chegaram ao Arraial de Lagoa Santa/MG em 17 de outubro de 1835, um pequeno povoamento de cerca de sessenta casas que escolheram como residência fixa e base para explorarem as cavernas da região.
Normalmente, os cientistas europeus passavam um tempo viajando pelo país, desbravando nossas riquezas naturais e depois retornavam para a Europa, ao conforto dos grandes centros europeus. Lá realizavam seus estudos em melhores condições de trabalho, em diálogo com seus pares e próximos aos museus e bibliotecas de referência. Mas Lund rompeu com essa trajetória habitual e resolveu se fixar no Brasil, especificamente em Lagoa Santa, para explorar por anos as cavernas cársticas da região. Ele certamente sabia da potencialidade das pesquisas que tinha ao seu alcance, mas também do alto preço pessoal e profissional que pagaria por isso. Mas mesmo assim realizou mais essa ruptura.
Durante dez anos, Lund e Brandt passaram o período seco do ano em viagens exploratórias nas cavernas da região e o período chuvoso em Lagoa Santa, catalogando, estudando, ilustrando e escrevendo sobre as pesquisas. Era uma vida árdua; dormindo e se alimentando mal; carregando tudo que precisavam em mulas e cavalos; utilizando tochas e instrumentos rudimentares; trabalhando por horas em ambientes desconhecidos, escuros e mal ventilados das cavernas. Essa foi a rotina de trabalho escolhida pelo jovem e rico dinamarquês Peter Lund.
Entre 1835 e 1845, Lund explorou inúmeras cavernas, coletou mais de 12 mil peças de fósseis que analisou, comparou com outras ossadas extintas e contemporâneas e catalogou. Escreveu suas conclusões e as enviou em forma de artigos (Memórias) para serem publicados em revistas europeias e em instituições brasileiras.
A população local inicialmente o considerava um maluco colecionador de ossos. A Paleontologia era uma ciência nova e ninguém compreendia a importância daquele trabalho. Não havia sequer paleontólogos que dialogassem com Peter Lund sobre seus achados e teorias no país. Ele as discutia, por correspondências, com grandes nomes da ciência mundial.
Mas após dez anos de árduo trabalho de exploração das cavernas mineiras, o homem que nunca temeu rupturas novamente não seguiu o esperado. Após tantos sacrifícios para formar sua coleção de fósseis de animais vivos e extintos, Lund catalogou minuciosamente todos eles e os enviou para museus dinamarqueses em 1845. Doou também algumas peças para a instituição de pesquisa brasileira com a qual dialogava – o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). A maior parte dessas peças se perdeu, mas essa é uma história para outro artigo. Assim como a polêmica sobre o direito de propriedade desse material paleontológico retirado do solo brasileiro e em posse de museus dinamarqueses. Esse rico patrimônio brasileiro não deve ser repatriado?
Quando Lund encerrou as escavações e enviou sua coleção, alegou motivos diversos: que na Dinamarca havia instituições que garantiriam sua preservação e estudo; que já não encontrava fósseis significativos e inéditos nas cavernas; que os custos das escavações eram muito elevados; que problemas de saúde o impediam de prosseguir com aquela rotina desgastante de trabalho. Talvez todos esses motivos tenham contribuído, de alguma maneira, para sua decisão.
Lund, porém, ficou no Brasil contrariando a lógica que o levaria à Europa, acompanhando sua coleção e recebendo os louros de um trabalho tão grandioso. Mas é importante frisar que o fim do trabalho nas cavernas não foi o fim do seu trabalho científico. Foi apenas mais uma mudança de percurso. Até sua morte, Lund estudou, escreveu, acolheu e orientou o trabalho de vários cientistas. Teve uma vida ativa na cidade, atendendo como médico à população, dando aulas e criando a Banda de Música Santa. Tornou Lagoa Santa um centro que atraía viajantes para conhecerem seu trabalho ou serem orientados por ele. Por isso, vários livros pelo mundo citam o nome de Peter Lund e de Lagoa Santa.
Mesmo com todas as dificuldades, Lund realizou estudos inovadores, questionou teses mundialmente aceitas, propôs interpretações que ainda hoje são discutidas pela comunidade científica internacional. Viveu em uma época de transição entre o paradigma catastrofista e o evolucionista. Em alguns momentos, estava mais próximo de um ou de outro. Mudou muitas de suas conclusões, pois desenterrou das cavernas provas que negavam suas ideias catastrofistas. Isso é o mais surpreendente, pois a maior parte dos cientistas tende a não enxergar ou não admitir aquilo que vai contra as suas próprias hipóteses e teorias.
Portanto, Lund teve sua trajetória e seu pensamento marcados pelas rupturas. Muitas vezes essas mudanças foram vistas pela bibliografia como contradições ou fruto de crises existenciais. Na verdade, são marcas de sua época marcada por grandes transições e transformações. Peter Lund está muito além do mito e das representações antagônicas que a ele são atribuídas. Foi um homem ambíguo como o foi seu próprio tempo, e é nessa ambiguidade que reside sua riqueza.