Desde a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) nos anos 1940, o percurso das políticas de saúde pública no Brasil evidencia a busca por um modelo integral e inclusivo. A Lei 10.216, de 2001, marcou uma virada ao redirecionar o foco para a seguridade e direitos das pessoas com transtornos psíquicos, promovendo sua reinserção social. Tal virada foi marcada pela importante atuação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), para enfraquecer o discurso hospitalocêntrico e para a criação dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), desafiando a exclusão em instituições psiquiátricas, em favor de um cuidado acolhedor.

A Declaração de Caracas (1990) e a Lei 10.216 (2001) ampliaram as mudanças, culminando na criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em 2011, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar dos avanços, ameaças higienistas e normatizadoras sinalizam a necessidade contínua de fortalecer as políticas de saúde mental, que comprovadamente oferecem abordagens mais eficazes e inclusivas para o tratamento psíquico.

Nessa mesma direção, no início de seu processo de estruturação, a psicanálise também se depara com os desafios impostos pelas instituições de cuidados à psique. No caso de Anna O., por exemplo, já se encontram apontamentos nesta direção. Na própria lógica de entendimento da histeria no final do século XIX fica evidenciada uma certa normatividade antagônica às patologias, característica de uma organização social capitalista, que levava os enfermos a condições desumanas de expropriação de suas próprias subjetividades. Reduzir a compreensão da histeria aos seus sintomas somáticos, como feito sistematicamente nas instituições psiquiátricas como o Sanatório Bellevue, é expressão não só do desprezo burguês pela vida de alguns, mas também das falhas de um discurso psiquiátrico hospitalocêntrico e hegemônico.

A psicanálise, ao estruturar sua base epistemológica, se apropriou da psiquiatria da época, tendo como ponto de partida, tanto de investigação quanto atuação, aquilo que é comum aos dois: a clínica. Entretanto, visitou seus pressupostos na tentativa de construir uma outra forma de compreender e tratar o sofrimento psíquico, bem como seus efeitos na vida cotidiana. Assim, na clínica de orientação psicanalítica, pretende-se ir além de uma observação somática e demasiadamente conclusiva. Visto que o sujeito se constitui na sociedade, a escuta de suas experiências também deve se valer do seu contexto cultural, histórico e social.

Nesse sentido Freud diluiu, categoricamente, as fronteiras entre o normal e o patológico, na mesma medida que se ocupou de teorizar uma prática de cuidado aos chamados distúrbios nervosos. Para isso:

Foi preciso achar um ponto para a abordagem desse problema, e resolveu-se buscá-lo na vida instintual da psique. Hipóteses sobre a vida instintual do ser humano tornaram-se, portanto, o fundamento para a nossa concepção da doença nervosa1.

Assim, entre os instintos de autoconservação (ou do Eu) e os sexuais (ou libido), o psicanalista clareia o importante lugar que o desejo sexual ocupa na teoria psicanalítica e, portanto, no tratamento psíquico.

Este entendimento do próprio funcionamento do aparelho psíquico traz consigo a necessidade de reformulação na forma de se pensar a fronteira entre normal e patológico. Compreender as origens e os possíveis direcionamentos das patologias da mente, a partir das movimentações do inconsciente, agride a imagem narcísica de um sujeito humano dono de seus afetos e controlador de seus comportamentos e ações. A psicanálise exige o reconhecimento da não onipotência do Eu, na medida em que atesta a existência do inconsciente como agente ativo no aparelho psíquico.

Nesse sentido, é preciso repensar as direções dos tratamentos propostos nas instituições públicas e, ao mesmo tempo, sistematizar o que se pretende com eles. Se, ao tratar da Ética psicanalítica, Lacan2 afirma que a psicanálise, ao constituir-se como garantia de que o sujeito possa de qualquer maneira encontrar seu bem, mesmo na análise; é uma espécie de trapaça, é necessária, no próprio entendimento de saúde mental, uma reorganização da função do desejo mais ao centro da discussão.

Ora, se a condição da satisfação plena das pulsões - ou a completude da falta - é impossível de se realizar, a angústia toma um caráter inerente à própria existência humana, e não a ausência dela. O que vale, portanto, na categoria de movimento é justamente o desejo, que resta além do sintoma. Na neurose, por exemplo, a abdicação do desejo em relação à moral civilizada é ponto de partida. A posição do acolhimento/tratamento deve, portanto, evitar a validação desta civilização em detrimento do Eu, por meio de sugestões ou promessas vazias de cura pelo bem-estar inexistente no capitalismo neoliberal. A ética psicanalítica tem muito a contribuir para esta problemática, uma vez que, por ela, a direção do tratamento deve o (re)posicionamento do sujeito em sofrimento na sua condição desejante3.

Cabe, aqui, questionarmos a psicanálise enquanto facilitadora do processo de promoção da saúde e não somente na condição de um tratamento a posteriori. Para isso, fixarmos a compreensão de saúde em “um estado de completo bem-estar físico, mental e social” pode soar contraditório, na medida em que essa própria ideia de completude, ironicamente, se mostra insuficiente. Entendendo que, no pacto civilizatório, inaugura-se também um mal-estar cultural, pode-se concluir que este perfeito estado de satisfação é mais uma impossibilidade falsamente atestada como real pelo subjetivismo, característico do mundo neoliberal4.

Assim, é crucial articular serviços de saúde mental com a ética psicanalítica, considerando a interação profissional-paciente como autonomia dual. E perder essa autonomia, muitas vezes quando o profissional reafirma a dominação do Outro sobre o Eu, enfraquece o tratamento. Com isso, reconhecer o desejo do sujeito e sua autonomia pode aumentar a eficácia das políticas públicas de saúde, orientando os profissionais eticamente em prol desse desejo.

Notas

1 Freud, S. (1919[1918]). Caminhos da Terapia Psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica, vol. 6. Belo Horizonte: Grupo Autêntica.
2 Lacan, J. (1988). Seminario VII. A ética da psicanálise.
3 Andrade Junior, Moisés de. (2007) O desejo em questão: ética da psicanálise e desejo do analista. Psyche (Sao Paulo) [online]. vol.11, n.21, 183-196.
4 Segre, M., & Ferraz, F. C. (1997). O conceito de saúde. In: Revista de saúde pública, 31, 538-542.