Andei pela madrugada como quem não teme o escuro. Como quem não teme a maldade humana. A única coisa que temia era a própria confusão de meu coração, tão perdido e sem sentido quanto meu percurso por aquelas ruas. Meu cigarro barato queimava em minhas mãos, eu não tragava, nem sequer pensava nele. Mas pensava na fumaça, que subia até meu rosto e ardia meus olhos. E aquela dúvida, as lágrimas que começavam a se formar em meus olhos eram do cigarro ou do meu coração?
A lua e as estrelas se mantinham como minhas companheiras. Naquela madrugada de segunda-feira mais ninguém se atrevia a caminhar. Todos dormindo, todos amando, chorando, cantando. Todos ocupados.
E minha mente se mantinha ocupada, mas eu não. Tão vazio de objetivos e desejos. Olhava para as estrelas e aos poucos as via cair. Estrelas cadentes, não existentes. Meteoritos passando pela órbita da terra. E aqueles poetas que tão veemente decidiram fazer desejos a pedaços de pedra voando tão longe de nós, longe demais para sequer saber que existimos.
Mas nós sabemos que aqueles pedaços de pedras existem, e nos preocupamos o suficiente para lhes dar um nome e até uma função. “Realizadores de desejos”
Eu não me preocupava com meus desejos o suficiente para compartilhá-los com algum objeto distante. Nem sequer pensava nos meus desejos, ou nas estrelas cadentes. Mas naquela noite pensei neles, e nas estrelas. Não posso dizer que me preocupei em desejar ou se aquela estrela o ouviria, mas me preocupei em por que desejava aquilo.
Desejava amor, tão fortemente como jamais desejei qualquer coisa. Tão solitário eu era, eu sempre fui. E então, desejava amor. Ser amado, como qualquer outro ser humano proveniente de sentimentos. Desejava alguém ou algo, para poder sentir. Desejava um sentimento.
Sentimentos são resultados de nós mesmos, mas, aparentemente o amor é algo que não surge de um ser solitário como eu. Pelo que entendi, para surgir o amor, são necessárias algumas coisas além de uma só pessoa, como por exemplo, uma outra pessoa. O amor que eu desejava era esse, o de duas pessoas. O que eu não poderia ter sozinho.
As rachaduras no cimento daquela calçada me incomodavam. Eu só percebi o quão perdido realmente estava até não reconhecer a calçada que pisava. Sempre olhando para baixo não me perdia. Mas naquela noite eu olhava para cima.
Perdido em todos os sentidos que podia me sentir. Não sabia aonde estava, não sabia que horas eram, não sabia quem eu era. Não sabia o que sentia. Só sabia o que queria sentir.
Quando olhei para cima e vi as estrelas caindo, os pedaços de pedra. Mantive o olhar ao alto. O olhar almejando algo que estava além de mim. Almejando meu desejo, e uma estrela.
Lágrimas que então escorriam pelo meu rosto, pingando até o chão de cimento deixando gotas como uma trilha pelo meu caminho. Lagrimas que eu sabia não serem provenientes da fumaça de um cigarro, e sim de um coração vazio. De uma alma vazia. Eu pensava demais, disso eu tinha certeza, e provavelmente esse era meu problema. Pensar no sentido dos sentimentos humanos e na minha necessidade de sentir amor, na minha crença de que o amor me faria feliz.
Sentimentos eram complexos demais, o amor era complexo demais. Parecia mais fácil ser apenas um pedaço de pedra flutuante no espaço chamado de estrela cadente. Seria mais fácil, apenas flutuar no vácuo e ser observado de longe por olhos brilhantes carregados de desejos esperançosos. Tornar-me então, um ser humano de vácuo. Vazio. Completamente sem propósito e vida. Não morto. Mas também não vivaz. Sem sentimentos, mas respirando. Vivendo por viver.
Comecei a correr pela madrugada, com as lágrimas embaçando minha vista. Em algum momento derrubei o resto do cigarro no chão. Eu corria, porque queria me sentir como uma estrela cadente. Rápida, bonita. Sem propósito.
Talvez eu sempre havia sido como uma estrela cadente, sem propósito. Apenas um pedaço de algo flutuando em algum outro lugar. Eu, apenas um pedaço de vida flutuando por algum lugar.
Já havia ouvido muito a frase “coração partido” para saber o que significava. Mas jamais havia tido meu coração partido. Jamais havia me apaixonado ou amado. Jamais havia me interessado por outra criatura viva. E era nisso que eu me identificava com as estrelas. Pois elas, como eu, não sentiam.
Estrelas cadentes não são estrelas de verdade, como já disse, são pedaços de pedras caindo pelo espaço afora. Caindo as vezes na terra, e cravando buracos no chão de uma forma tão marcante que sempre seriam lembrados. Eu queria cravar um buraco no chão, mas provavelmente não seria tão incrível quanto uma estrela.
Eu percorria o caminho para casa quase sem folego, a respiração pesada. Não sabia dizer em qual momento decidir voltar. Mas, estava voltando. Apenas cansado de seguir sem rumo, pois, naquele caminho tão perdido eu sabia que nada encontraria no final. Meu corpo podia sentir isso, mesmo que minha mente apenas divagasse.
Uma estrela cadente sempre chegaria a um final. Apesar de tanto desejar, eu não era uma estrela cadente, meu destino não era certeiro.
Quando cheguei até a porta do meu prédio a luz do sol já começava a nascer e poucas estrelas, realmente estrelas, se mantinham de pé. Nessa hora, aquela estrela cadente já estava caída em algum lugar, aquele pedaço de pedra que passara por mim mais cedo já havia encontrado seu fim. Já havia chego ao seu destino. De certo modo, eu chegava ao meu.
Subi as escadas ainda correndo. Dois degraus de cada vez em pulos. Cinco lances. No último pulo, tropecei.
Simplesmente cai de cara no chão, com um baque. Meus olhos se fecharam e eu vi o escuro. Tão escuro quanto aquela madrugava que eu havia passado acordado na rua olhando estrelas no céu.
E quando abri os olhos, novamente, tão escuro, quanto o cabelo preto da moça de saia vermelha parada na minha frente. Seus olhos arregalados, assustada. Porque um estranho havia tropeçado de seus pulos desengonçados e caído a sua frente.
Ela me olhava boquiaberta. Sua jaqueta dourada me lembrava a embalagem de algum tipo de chocolate que eu gostava muito, e o coturnos pretos me lembravam aquelas bandas de rock. Mas o dourado também me lembrava dos desenhos infantis de estrelas amarelas com cinco pontas.
Seus olhos negros como a noite cruzaram os meus, e ela agachou no chão, estendeu sua mão com uma luva de lã preta até mim. Sorrindo, até rindo. E eu, então sorrindo, segurei sua mão.
Ridiculamente eu havia caído. Um otário cadente.
E então cravado minha marca. Não um buraco no chão. Mas cravado uma lembrança no sorriso daquela moça que me erguia. Do mesmo jeito que ela em mim, havia cravado sua lembrança.
Não seria algo incrível para todos os seres humanos, como o buraco de um meteoro. Mas daquele momento em diante eu sabia que seria algo incrível para dois únicos seres humanos.