A correspondência entre artistas – nomeadamente entre escritores – desperta um fascínio muito característico, desde logo devido ao caráter privado e intimista do texto, o qual nos permite tomar contacto com questões respeitantes ao próprio ofício da arte e à mundividência dos seus autores. É esse o caso das epístolas trocadas entre Agustina Bessa-Luís e José Régio, compiladas no livro Correspondência Agustina-Régio (1955-1968). Oferecendo-nos uma visão global e excecional das suas personalidades biográficas e literárias, esta publicação configura também uma luz renovada sobre as obras de dois génios da cultura portuguesa.
As 58 missivas em questão revestem-se de especial relevo, na medida em que se verifica uma confluência entre o discurso literário e a epistolografia. Nelas incluem-se confissões do foro íntimo (sobretudo por parte de Agustina – é certo), mas também considerações acerca da literatura contemporânea e do panorama crítico português: “Finalmente, desta vez, os júris concessores de prémios acertaram”, escreve Régio, felicitando a amiga, a propósito da atribuição de um prémio literário ao romance A Sibila.
Convém relembrar, desde já, que mais de 20 anos separam Agustina e Régio. Não será, por isso, de admirar que a jovialidade da autora de Fanny Owen contraste com o perfil mais sóbrio e contido do seu interlocutor, que não hesita em assumir funções de conselheiro. Vejamos, a título de exemplo, os seus comentários acerca de um desentendimento entre Agustina e João Teixeira de Vasconcelos, o qual havia escrito uma duríssima crítica (de pendor biografista) sobre a obra O Susto:
“A Agustina vibra demasiado quando responde a qualquer ataque. Como o ‘excesso’ é das suas características, – naturalmente se excede. Até chega, pretendendo o contrário, a engrandecer a estatura do adversário!”
De facto, José Régio não renuncia ao seu papel de amigo mais velho e, por isso mesmo, mais experiente. Tal como observou Isabel Ponce de Leão, as cartas e postais que o autor de Cântico Negro dirige à amiga diferem consideravelmente das que endereçou a Jorge de Sena ou a Branquinho da Fonseca, revelando mesmo “uma timidez e um acanhamento em pormenores do foro íntimo, porventura motivados por questões de idade e de género”. Todavia, apesar da clivagem geracional entre ambos, os autores convergem em variadíssimas matérias, das quais se destaca a deceção face aos bastidores das letras portuguesas, chegando a ser questionada a conduta de algumas personalidades do meio, como é o caso do crítico João Gaspar Simões.
Estas missivas, inicialmente pautadas por um tratamento cerimonioso, vão dando lugar a uma respeitadora intimidade, a qual parece, em grande medida, motivada pela interpelação constante de Agustina, que, com ânsia, reivindica respostas mais frequentes ao seu interlocutor: “Volte a escrever-me. Depressa.” Uma ânsia que resulta de uma grande estima e que, infelizmente, a distância geográfica converte em tristeza; Régio divide o seu tempo entre Vila do Conde, Portalegre e Lisboa, ao passo que Agustina, durante estes 12 anos de correspondência, vai deambulando pelo Porto, Régua, Esposende e Atenas.
Com efeito, é este apreço mútuo que possibilita o exercício crítico levado a cabo nas referidas epístolas, pois, apesar dos 20 anos que os distanciam, Agustina e Régio situam-se num mesmo plano intelectual, pelo que acompanham com genuíno interesse a obra um do outro, tecendo reflexões sobre as mesmas, num registo sincero e construtivo:
“Quando leio as suas peças de teatro, acho que nelas não dá a exatidão do que é, mas de algo diferente; acho que criou uma personalidade para sentir e para pensar, e que de certo modo o esconde de si próprio. Há uma certa qualidade de bruteza que nos deve acompanhar para os livros do que em nós é sensibilidade e, tenho que dizer mesmo, perfeição.”
Régio também não se inibe de fazer comentários francos relativamente à obra da sua interlocutora, gabando-lhe o talento, mas estimulando o debate acerca de algumas das suas fragilidades:
“Quem lê ‘Os Incuráveis’ logo compreende que a Autora não é de parar. Eu escrevi um artigo sobre o seu livro – ‘Um livro excecional e alguns dos seus problemas’ – que, por circunstâncias várias, não chegou a aparecer.”
Além do diálogo crítico que estabelecem sobre as obras um do outro, Agustina e Régio convocam frequentemente as suas próprias criações, num exercício que resulta riquíssimo, pela possibilidade de leituras despertadas. José Régio considera mesmo que uma das cartas de Agustina é “um pequeno capítulo acrescentado à Sibila”, corroborando, uma vez mais, o caráter literário desta correspondência. E embora estejamos diante de missivas de dois literatos, as mesmas estão imbuídas de uma certa quotidianidade, como verificamos pelas referências aos problemas de saúde de Régio: “A minha convalescença, sobretudo psíquica, não tem sido fácil”; ou através das confissões mais íntimas e espontâneas de Agustina: “Eu acho que sou um fracasso como amiga de alguém”. É o cruzamento entre a erudição e a mundanidade que configura a importância deste diálogo epistolar, no sentido em que nele se encontram presentes duas figuras intelectuais, mas também humanas.
Dito isto, a intimidade epistolográfica que aqui observamos oferece-nos uma visão privilegiada sobre a relação de dois grandes pensadores com o mundo que os rodeia, para além de nos proporcionar um conhecimento inigualável acerca do contexto em que ambos produziram algumas das suas obras. Assim, a presente correspondência assume ainda maior relevância, não porque se pretenda proceder a uma leitura ou interpretação biografista das obras de Agustina e Régio, mas antes porque nos permite vislumbrar o procedimento criativo de dois gigantes da cultura portuguesa, unidos numa prolífica partilha que tem tanto de intelectual como de humana.