Considerado potencial líder na economia verde, o Brasil continua submerso no ufanismo de país do futuro, enquanto milhões de brasileiros não sabem o que vão comer amanhã e ainda não comeram nada hoje.
(Paulo Rebêlo)
Protagonismo nunca foi – e continua não sendo – o forte da América Latina. Por isso, é um tanto assustador quando a imprensa posiciona o Brasil como uma futura potência global da chamada economia verde, grande parte por impulso das crescentes oportunidades comerciais de um lado e, do outro, novas descobertas em combustíveis naturais e recursos renováveis.
Por mais de vinte anos, mais ou menos entre as décadas de 1990 e 2010, a esperança residia em nossas hidrelétricas, que supostamente se tornariam referências globais. Em 2014, o jornal britânico The Guardian ainda levantava essa bola e questionava: poderá o Brasil se tornar a primeira superpotência ambiental?
Agora, a modinha da vez é o hidrogênio verde e, novamente, o Brasil é forçado, pelos outros, a abraçar a ilusão oca de liderança. Essa percepção midiática tem uma barragem inteira de erros, seja de conceito ou fundamentação, mas a maioria é proposital. Às vezes, parece difícil separar fatos de factoides.
Verdade seja dita, não se trata de “apenas mais um” ufanismo tupiniquim, pois a imprensa nacional não está sozinha nesse trem da utopia ambiental com destino à Pindorama. Publicações renomadas como The Guardian e The New York Times, apenas para citar dois exemplos gigantes, regularmente expandem essa retórica surreal. Resta saber se por desconhecimento ou ingenuidade, embora a maioria dos indícios mostre que é apenas um astuto senso de nova oportunidade colonial: ainda há muito a ser explorado comercialmente nos recursos naturais da América do Sul. E ainda há muito mais recursos a se descobrir.
E quem seria melhor indicado para explorá-los do que os eternos colonizadores, agora sem colônias, mas com uma chance enorme para fazer uma neocolonização travestida de conservação ambiental? As recentes frustrações nos acordos comerciais entre Brasil e União Europeia, em 2023, são apenas a ponta do iceberg dessa apropriação enviesada.
O Governo Brasileiro sabe disso, reconhece, admite, bate o pé e reclama, mas, como toda colônia, historicamente pouco pode contestar. Por quê? Por causa da economia mesmo. Não a economia verde, mas a boa e velha economia do capital. Que a gente ainda precisa, e muito, por estarmos séculos atrasados em relação ao andar de cima.
Nessa fundamentação utópica de um Brasil líder global da economia verde, o erro é crasso desde a concepção, porque estamos falando de um modelo econômico que (teoricamente) resulta em melhoria do bem-estar da sociedade e da igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz os riscos ambientais e a escassez ecológica. Agora você deve se perguntar: inclusão social? Desde quando? Bem-estar? Redução de riscos ambientais? No Brasil, sério?
Não obstante a atual Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ser um ícone histórico (e verdadeiramente global) da luta e defesa do meio ambiente, todos os dados minimamente verificáveis mostram o quanto as queimadas ilegais seguem sem freios. O governo, aliás, nenhum governo, consegue conter. Não há fiscalização eficaz, não há recursos suficientes e, convenhamos, a realidade é que não há interesse real, nunca houve. Melhor nem falar sobre o Marco Temporal, outro atraso retumbante em toda e qualquer pauta ambiental.
Talvez seja por isso que o nome seja economia verde, nesta ordem, com a economia na frente e o verde depois.
O discurso de futura potência verde também causa calafrios em qualquer cidadão que já tenha aberto sequer um livro de História na vida, mesmo os didáticos do colégio. O Brasil é o “país do futuro” mais sem visão de futuro que existe.
Para hoje, seguimos afogados num atraso inexplicável em nossa industrialização, desenvolvimento social e, principalmente, infraestrutura básica. Pensou em saneamento? Pois é. Para o amanhã, o investimento em educação básica, ciência, pesquisa e tecnologia segue sendo um dos mais baixos do mundo e, politicamente, serve para abrigar os políticos-amigos que ficaram sem cargos na eleição passada.
Variáveis verdes para um mundo cor-de-rosa
Os três pilares da economia verde são: baixa emissão de carbono, eficiência no uso de recursos e busca pela inclusão social.
Sim, o Brasil apresenta uma baixa emissão de carbono. Só que não tem nada a ver com a Floresta Amazônica, muito menos com nossas potencialidades verdes ou políticas públicas ambientais. Simplesmente não somos economicamente desenvolvidos o suficiente para ter alta emissão de carbono. Em nenhuma escala.
Apesar de toda a poluição existente nas grandes cidades, e da ausência crônica de medidas de contenção, o Brasil é uma formiguinha até mesmo para os padrões médios de industrialização. Temos e vamos continuar a ter baixa emissão de carbono porque somos pobres como país e subdesenvolvidos como nação. No futuro, quem sabe? Naquele tal país do futuro.
Falar em eficiência no uso de recursos é uma agressão ao bom senso. Basta observar (e estudar ou fazer parte) sobre como funcionam os tentáculos do nosso Leviatã mais famoso: a máquina pública. Uma geringonça cujas engrenagens estão entre as mais ineficientes do mundo, com um funcionalismo público que é motivo de chacota nacional e uma política cujo fisiologismo partidário e entreguismo (de cargos e emendas) poderia sustentar nações inteiras. Quanta eficiência, não?
Inclusão social, veja bem, será que ainda existe alguma criatura viva neste planeta que precise ser lecionada sobre que tipo de inclusão social se tem no Brasil? Seguimos entre as últimas colocações no ranking de desenvolvimento humano e entre os primeiros lugares nos países com os maiores contrastes sociais. Houve melhoras? Claro, melhoras significativas, palpáveis e verificáveis, mas o resto do mundo (com algumas exceções) não parou no tempo. Nossas melhoras são raquíticas em relação ao desenvolvimento do mesmo andar de cima.
Há décadas, nossa ideia de inclusão social tem sido apenas uma: colocar o mínimo de comida na boca da maioria da população. Para que não morram de fome em praça pública. E até isso, o mínimo do mínimo, temos falhado miseravelmente e ainda regredimos.
Apesar de um período de avanços reconhecidos internacionalmente, com o pioneiro projeto Fome Zero em 2003 e, no ano seguinte, a consolidação com o Bolsa Família, os dados desta década mais recente mostram o quanto voltamos a regredir. Hoje, nas ruas, nos semáforos, nos abrigos, escutamos gritos estridentes de fome e insegurança alimentar em todos os lugares.
Relatório da FAO mostra que 70,3 milhões de brasileiros passaram o ano de 2022 em estado de insegurança alimentar moderada, que é quando possuem dificuldade para se alimentar. O levantamento também aponta que 21,1 milhões de pessoas no país estavam em insegurança alimentar grave, que é um termo educado e politicamente correto para definir o estado mais cruel e desumano de fome.
Insegurança alimentar moderada é quando você não sabe se vai conseguir ter uma refeição no dia seguinte. Você come alguma coisa hoje, mas não sabe quando poderá comer novamente. A fome (insegurança grave) para as pesquisas é quando você nem come hoje e nem consegue imaginar quando ou qual o dia em que terá comida. E por comida, entenda que é qualquer coisa que se possa mastigar para não desmaiar.
Sobre os efeitos da fome no corpo de uma pessoa, principalmente das mulheres grávidas, recomendo a leitura do livro Nordeste Pigmeu, um clássico do Dr. Meraldo Zisman, publicado em 1987 e reeditado em 2022, o mesmo ano em que o Brasil retornou ao Mapa da Fome da ONU.
Com tantas potencialidades reais e tangíveis no Brasil, inclusive a de voltar a ser um exemplo mundial no combate à fome, será que a gente precisa mesmo insistir no discurso de potência verde, de líder ambiental?
Pensando bem, será que a gente precisa ser líder de alguma coisa? Só quem se beneficia desses ufanismos rasos é a classe política. Não à toa, os responsáveis diretos pelo que somos e apresentamos.