Há algumas semanas tive o prazer de assistir a um belíssimo concerto: Quinteto Astor Piazzolla. Para os amantes da música, a oportunidade de presenciar grandes artistas tocando pode ser comparada a um momento catártico, no qual as emoções fluem, transpassando os limites corpóreos impostos pela pele, gerando lágrimas, risos ou brilho no olhar, dentre tantas outras maneiras pelas quais se podem expressar as emoções. Durante as primeiras músicas, seguindo o ritmo energizante do tango, meus pensamentos voavam desenfreados, como uma ventania que tudo ao longe leva. Voavam as preocupações cotidianas, as inquietudes e incertezas do tempo em que vivemos.
Quando esses primeiros pensamentos haviam sido dissipados, tal qual a natureza, minha mente experimentava harmonia e tranquilidade, mais parecida como a bonança depois da tempestade. Neste estado, a serenidade me permitiu perceber como o grande Astor Piazzolla foi um ícone corajoso. Certamente, criar a sua música requereu além de virtuoso talento musical, uma força pessoal capaz de romper padrões.
Quanta criatividade, era a expressão que não saia de minha mente. Quando me lembrei de um conto lido há anos, durante a graduação em pedagogia: Flor vermelha de caule verde de Helen Barckley. Esse conto relatava as experiências de uma menina que adorava artes e se sentia muito feliz quando sua professora pedia para desenhar. Ela expressava o modo como via o mundo e desenhava flores e mais flores, coloridas, com diversas formas e tamanhos. Quando, orgulhosa, mostrava sua obra para a professora, esta sempre a corrigia, tentando ensinar à menina que as flores deveriam ter pétalas vermelhas e hastes verdes, seguindo uma forma padrão. A menina triste ficava, mas refazia sua obra, seguindo a orientação da professora. Algum tempo depois, essa menina mudou de escola e a nova professora pediu um desenho livre: a menina desenhou uma flor com pétalas vermelha e hastes verdes.
Astor foi forte. Eu não necessitava ser uma experta em tango, para imaginar que, de uma ou outra maneira, Piazzolla sabia interpretar o que sentia e se expressar, rompendo padrões que o permitiram criar uma grande obra. Não sou especialista em Piazzolla, tampouco em tango, mas, sim, sou curiosa. Por meio de uma breve busca, descobri que Astor era filhos de italianos, nascido na Argentina e que viveu em Nova Iorque boa parte de sua vida, desde a infância. Essa mescla cultural que envolveu seu desenvolvimento, talvez tenha sido o primeiro fator que o estimulou a romper padrões, a não tornar sua música em uma flor com pétalas vermelha e hastes verdes. Quanto mais diverso o contexto cultural experimentado por uma pessoa, mais ampla a sua visão de mundo, maior a quantidade de modelos e ideias a partir das quais se pode inovar. Astor sintetizou em suas músicas, tudo o que experimentou nas vizinhanças em que viveu, o jazz, a música clássica e o tango tradicional.
Quando diziam que sua música não era tango, Piazzolla respondia que era tango contemporâneo, afinal se tantos outros costumes haviam mudado, porque não a música? Ah... quanta autoeficácia, penso eu quando descubro um pouco mais sobre o talentoso Piazzolla! Sem dúvidas, Astor tinha uma habilidade musical incrível! Um dom que foi sendo lapidado por meio do treino e aprendizagens que teve. Tinha, também, uma forte crença de autoeficácia, pois persistir em seu processo criativo, mesmo quando desconsiderado por muitos que não o entendiam, tampouco valorizavam sua música, requer uma confiança na própria capacidade de compor inabalável.
Inovar, seja em artes, tecnologia ou qualquer outra área, é fruto de uma ação consciente impulsionada por criatividade e autoeficácia. Pessoalmente, penso que todos nós temos uma semente de criatividade e de autoeficácia em nosso ser, esperando ser regada para desabrochar. Penso que, infelizmente, esta nem sempre se desenvolve porque ao longo de nossas vidas damos muita importância às falas de outras pessoas, que nos limitam e nos levam a ser como os demais, colocando em modo hibernal nossa essência e nossos dons. Não sou ingénua ao ponto de pensar que quem tudo quer, tudo pode, mas acredito que sempre temos condições de escolher como reagimos aos imprevistos da vida que não podemos controlar. E quando temos claro qual nossa essência e acreditamos na nossa capacidade de desenvolver nossos dons pode ser mais leve o caminho que percorremos nesta jornada.
Todavia, naquela noite, durante o concerto, meus pensamentos me levaram à educação de minhas filhas. Teriam elas a força de Astor para olhar a si mesmas e reconhecerem seus dons, seus sonhos e persistirem? Teriam elas a força para desenharem as flores com as cores e formatos que imaginassem? Como mãe, teria eu o equilíbrio necessário para orientá-las a encontrarem a ténue divisão entre seguir as normas necessárias que nos protegem e romper com as que nos limitam? Foi então que pensei em rebeldia.
Há que ser um pouco rebelde para se negar a seguir padrões e a se encaixar nos moldes que nos ensinam a como pensar, como escrever, como se vestir, por exemplo. Há que ser rebelde para não seguir as tendências que teimam em nos conduzir os algoritmos, tornando-nos em seres automáticos, cuja a ilusória participação, na verdade, mascara a apatia pela qual se vive em redes virtuais. Há que ser rebelde para pensar por si próprio, reconhecer e respeitar as diferenças e individualidades.
Talvez a inovação seja fruto da criatividade, da confiança e da rebeldia interconectadas. Teria sido Astor Piazzolla um rebelde? Talvez.