Há algum tempo existe um senso comum de que não se pode analisar a obra pelo autor. Entretanto tal afirmação pode não ser tão verídica, ainda que, em determinados momentos, a interpretação de um texto não possa ocorrer tendo em vista a vida do autor. Expliquemos por que essa afirmação não passa de uma falácia.
Primeiramente, vamos explicar alguns conceitos: narrador, instância autoral e autor.
O narrador é uma figura que existe apenas no texto. Ele pode manifestar traços do autor, mas possui características próprias que, nem sempre se confundem com quem escreve. Em Leite Derramado, de Chico Buarque, por exemplo, o narrador é um moribundo de 100 anos, ao passo que o autor, à época da publicação, contava 35 anos menos.
Por sua vez, a instância autoral é uma estratégia discursiva do autor que deseja transmitir alguma forma de pensamento ou mesmo opinião ao leitor; ela se manifesta de forma menos explícita, como as figuras no teto de sua casa, no Engenho Novo.
Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos blocos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens.1
E essa estratégia, por sua vez, pode apontar para alguns possíveis posicionamentos que não estão ditos, mas presentes. É o que aponta Senna2, ao comentar essa passagem.
Entretanto, creio ser maior o refinamento, mais elaborada a sofisticação do embuste: no capítulo em que pretensamente vai explicar o livro, tendo já enganosamente explicado o título, menciona as quatro personagens, cuja razão de estarem ali diz não alcançar. Os três primeiros, César, Augusto e Nero foram, de fato, atraiçoados. Massinissa, porém, manda uma taça de veneno a uma esposa irrepreensível e, sobretudo, digna. Pergunta-se o leitor avisado, ao ler pela décima vez esse romance inesgotável: como a Desdêmona recorrentemente referida no texto, teria Sofonisba morrido inocente? Desdêmona morre vítima de um mal-entendido e do caráter impetuoso do mouro Otelo, vítima por sua vez de sua própria vulnerabilidade e da maldade gratuita do veneziano lago. O narrador Dom Casmurro sabe disso e o afirma no capítulo 135. Mas ao inserir aí essa desconhecida Sofonisba, presenteada pelo marido com uma taça de veneno não por tê-lo traído, mas para não trair os seus princípios, para preservar a sua integridade, não estaria o autor Machado prevenindo- nos contra seu narrador? Não seria ela, como a inocente Desdêmona, um alerta ao leitor?
A explicação acima nos deixa bastante claro como a instância autoral pode atuar em um livro; porém o autor é alguém com uma vida, com sentimentos e existe além da ficção. E negar que ele possa se derramar em seus escritos é querer conferir ao ser humano uma isenção, uma impessoalidade que lhe escapa. Não totalmente senhor de si, o homem também se submete a seus gostos e a suas preferências e isso, mesmo que se tente disfarçar, se lhe torna impossível.
Autores como Manuel Bandeira deixam claro em sua poesia o quanto sua condição biográfica pode ser transmitida em sua obra. Um exemplo claro disso são os dois primeiros livros do poeta pernambucano, Cinza das horas e Carnaval, respectivamente de 1917 e 1919, que transmitem todo o seu problema com a tuberculose. Em vários outros poemas ele também mostra esse seu lado confessional.
Entretanto, fora da literatura, alguns cientistas deixam bem claras suas preferências e tentam justificá-las, transformando-as em teorias científicas. Esse é o ponto-chave de um livro incrível de E. Michael Jones, o seu Modernos degenerados: a modernidade enquanto racionalização da perversão.
Uma obra audaciosa
O livro de Jones foi publicado em terras americanas em 1993, mas traduzido apenas em 2021 para o português pela Vide Editorial. Audacioso, o autor mostra as contradições entre vida e obra de personagens importantes como Margareth Sanger, Alfred Kinsey, Pablo Picasso, Sigmund Freud, entre outros.
Para ele, o que muitas vezes se mostra como algo científico nada mais é do que uma forma de se tentar justificar uma perversão mal curada. Vale a pena aqui mostrar um trecho sobre o pesquisador Alfred Charles Kinsey, cujo estudo sobre o comportamento sexual humano teve impacto nas políticas de controle de natalidade do mundo.
Sem a aura de legitimidade de Darwin, sem a evolução como uma justificativa científica do desvio, Kinsey seria somente mais um homem o de meia-idade obcecado pela pornografia. Com eles como seu alicerce filosófico, ele podia colecionar pornografia impunemente e até mesmo desprezar as leis sobre obscenidade nas cortes. O jaleco de cientista se tornou uma versão mais respeitável da capa de chuva do exibicionista, e Kinsey podia usar a ciência como o principal tacape a golpear até a inconsciência os costumes sexuais de seu país. A filosofia dele era algo mais que o relativismo moral. Se Lorde Keynes inventou a economia homossexual, então a contribuição de Kinsey para a modernidade é a entomologia homossexual. É uma ideologia – elaborada com a ajuda de Darwin – na qual o comportamento desviante é a causa de todo progresso. O desvio é o motor que permite que novidades aconteçam. Sem ele, não haveria sociedade humana, seres humanos e animais superiores, só existiria o protoplasma primordial com seus genes padronizados.3
A perversão de Kinsey é, talvez com o comportamento sexual desregrado de Sanger um dos pontos altos da obra que mostra, por exemplo, como Picasso demonstrava seu encanto pelas mulheres por meio de sua pintura realista e seu desprezo pelas mesmas mulheres pintadas anteriormente, por meio de seu cubismo.
No entanto, ao citar a escritora do New York Times, Anna Quindlen, que se dizia uma católica progressista, Jones nos mostra como a defesa de uma posição ambivalente em relação a um tema como o aborto pode ser motivada pela culpa originada da traição ao pai de seus filhos. Ele nos mostra como, em sua vida, a autora passou a defender posições cada vez mais distantes de sua formação inicial – ela fora formada em um lar católico tradicional – por causa desse envolvimento amoroso. Ao invés de buscar o perdão, tomou posições cada vez mais progressistas para poder justificar seus comportamentos ditos progressistas.
(...) os escritos da Srta. Quindlen resumem o triunfo da culpa como instrumento político – tanto na Igreja, onde a estratégia é conhecida como “dissensão”, quanto na sociedade, onde o Estado promete um poder redentor, ao mesmo tempo que sucumbe a estratagemas dos mais hábeis na orquestração da culpa para fins políticos. (...) O ativismo político não removerá a culpa; somente Deus pode fazê-lo. A única saída do pântano da chantagem espiritual que domina a vida política neste país é o reconhecimento de que nossos pecados – não nossas viagens de negócios – são a fonte de nossa culpa e que o confessionário, e não o Congresso, é o lugar adequado para se lidar com eles.3
O livro de Jones se constitui uma obra primorosa que nos mostra de forma clara que autor e obra estão, sim, intrinsecamente ligados e que é impossível dissociá-los, bastando um estudo mais a fundo a respeito daquele para que se possa perceber que é impossível dissociar obra e autor tanto nos estudos literários quanto nos científicos.
Notas
1 Assis, Machado de. Dom Casmurro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Egéria, p. 24, 1979.
2 Senna, Marta de. Estratégias de embuste: relações intertextuais em dom casmurro. Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, p. 167-174, (1º sem. 2000).
3 Jones, e. Michael. Modernos Degenerados: a modernidade enquanto racionalização da perversão. Campinas: Vide Editorial, 2021.