Eu africana me confesso
Ave de raízes enterradas no vento
Tronco de barbatanas em pétalas
Flor rubra nascida no charco
Gritando em pleno deserto
A canção do mar das ilhas
Eu africana me confesso
Mulher de imponderáveis errâncias
Num mundo de distopias
Trilhando rotas de desespero
Derrubando todos os sofrimentos
Eu africana me confesso
Mulher do mundo e de paixões desenfreadas
De irredutíveis amores
Inconsequente e destemperada
Mas sempre de punhos cerrados
Resiliente no deserto da esperança
Eu africana me confesso
Visionária e idealista
Procurando por oásis
Sonhando uma África livre
Sem povos martirizados
Nem gente em convulsões
Eu africana me confesso…
Estava sentada num banco da Esplanada da Praça 12 de Setembro.
Não fazia propriamente nada.
Subitamente ouvi o ruído desagradável de uma bofetada a estalar impropriamente na face de alguém.
Seguiu-se-lhe um gemido de dor.
O instinto levantou-me e dei por mim, atónita, a observar o medievalismo de uma cena que julgava para sempre banida do nosso quotidiano: um homem batera na “sua” mulher, em plena praça pública, porque aquela não lhe tinha obedecido. De olhar carregado e gestos brutais, o homem empurrava “o objeto” que adquirira por direito conferido pelo facto de ele ser homem e ela, a “sua” mulher.
Completamente fora de mim pela selvajaria do ato, ia a interpelar violentamente aquele homem quando o amigo que me acompanhava me puxou para trás, impedindo-me de falar.
Explicou-me então, enquanto via o homem dobrar a esquina da rua acompanhado da mulher que de rosto no chão parecia afogar soluços, que aquilo era prática conhecida naquele casal, e que o homem ainda antes de se terem casado já costumava bater-lhe.
Passei o resto da tarde a discursar sobre os direitos da mulher, sobre a subjugação secular que leva a mulher a sujeitar-se a situações degradantes, sobre o procedimento vergonhoso que ainda era apanágio de muitos homens e sobre as perspetivas que a proclamação da independência tinha trazido à causa da emancipação feminina.
O meu amigo, intimamente envergonhado pelo procedimento do seu semelhante, apoiava-me e fazia coro comigo.
Algumas pessoas que tinham presenciado a cena aproximaram-se de nós e tomaram parte na conversa que se generalizou.
Foi reconfortante constatar que todos os presentes eram unânimes em condenar a atitude do homem.
Pensei comigo que mais tarde haveria de procurar aquela mulher, falar-lhe dos seus direitos, elucidá-la sobre as possibilidades de o tribunal ajudar a modificar a atitude do homem, seu marido. As leis do pós-independência eram claras, como também são claros os direitos de qualquer humano.
Lamentável é que mentalidades retrógradas persistam em praticar atos que ignoram as mais elementares transformações ocorridas na nossa sociedade.
E enquanto prometia firmemente a mim própria que haveria de procurar a ofendida, revia mentalmente o olhar submissamente despersonalizado daquela mulher de rosto marcado e barriga grávida a dobrar a esquina a reboque do “marido”.
Sou aquelas mulheres todas
Que um dia ousaram gritar
Escravidão nunca mais
Colonialismo nunca mais
Racismo nunca mais
Sou aquelas mulheres todas
Que um dia ousaram afirmar
Machismo nunca mais
Autoritarismo nunca mais
Submissão nunca mais
Eu sou sim aquelas mulheres todas
Que um dia se amotinaram
E com lágrimas de sangue
A plenos pulmões proclamaram
Pedofilia nunca mais
Feminicídio nunca mais
Misoginia nunca mais
E com elas todas
Deixarei minhas pegadas
Marcando a nossa história
Em vermelhas folhas de papel a sangrar