Cresci assistindo comédias dos anos 90. Everybody Loves Raymond, The Nanny, Boy Meets World, Even Stevens, Friends, entre muitas outras. Uma das minhas favoritas, e que segue forte, é That ‘70s Show; uma série que acompanha a vida de uma turma de amigos jovens crescendo nos anos 70. Meu personagem favorito sempre foi Stephen Hyde, o rebelde cínico que vinha de uma família complicada. Ele tinha cabelo cacheado, usava óculos de sol dentro de casa, sempre optava por camisetas de bandas de rock, e era a voz sarcástica do grupo. Impossível não adorá-lo.
Hoje, 27 anos depois do início da série, o ator que interpretava Hyde, Danny Masterson, acaba de ser condenado à prisão por pelo menos 30 anos por relacionamento impróprio com mulheres. Além disso, faz parte de um dos piores cultos religiosos conhecidos; a Cientologia, ativamente envolvida ao longo do julgamento.
E então, vem a pergunta: ainda podemos assistir a That ‘70s Show, e rir das piadas bobas? Ou a realidade da vida do ator deve necessariamente desmerecer seu trabalho? Eu voto na primeira opção. Duas coisas podem coexistir: uma pessoa pode ser talentosa, e extremamente defeituosa. Recentemente, com a cultura de cancelamento, esse fato tem sido questionado. Atores, músicos, e artistas no geral, não são simplesmente julgados pelo seu trabalho, e sim por toda e qualquer posição política e social que já mantiveram, por qualquer erro, qualquer relacionamento, e qualquer ação errônea. Um padrão que no geral não usamos para medir o trabalho de mais ninguém. Eu, pelo menos, não estou interessada na posição política do encanador que contrato para trabalhar na minha casa, ou na vida pessoal do dentista que trata meus dentes, ou no histórico de relacionamento do meu contador. Contrato profissionais baseado em seu trabalho. Atores e músicos são julgados muito além disso.
Isso não quer dizer que fama e dinheiro devam existir acima da lei - que, por muito tempo, pareceu ser o caso. Danny Masterson, por exemplo, cometeu um crime, e deve ser punido, mas Stephen Hyde não, ele é um personagem fictício e divertido. Aliás, se realmente usássemos os critérios defendidos pela cultura de cancelamento, julgando personagens pelas ações de seus atores, acredito que nenhum sobreviveria.
A forma como julgamos (ou deixamos de julgar) os membros de Hollywood vem da glamourização com a qual os associamos. Eu sou vítima disso; acho quase impossível pensar em Nicole Kidman e Brad Pitt como seres humanos - parecem mais seres místicos que provavelmente estão sempre cheirosos e nunca têm dor de barriga. Com essa fama e expectativa, claro que vem muitos benefícios - o principal sendo a fortuna - mas também um malefício importante. Como nós, a sociedade, os vemos como seres mais nobres do que meros mortais, e tendemos a atribuir um valor desproporcional à tudo que é dito pelos tais semideuses, os colocamos sob um microscópio potente e analisamos cada centímetro de seus corpos e cada palavra de suas falas. Julgados sob essas condições, claramente ninguém sai livre. O pior de tudo, é que fingimos choque quando descobrimos que não se tratam de seres perfeitos e exigimos seu cancelamento imediato.
Primeiramente, ao meu ver, precisamos diferenciar entre uma ação problemática e um crime. Criminosos devem ser analisados pela justiça - não pela internet, e nenhum nível de glamour deveria ser superior à legalidade. Uma ação problemática, por outro lado (falta de empatia, um comentário de mal gosto no twitter de 10 anos atrás, traição), não deveria ser o suficiente para uma pessoa perder sua fonte de renda e ser linchada e isolada da sociedade. É isso que a cultura de cancelamento promove; qualquer adolescente com acesso a um computador vira júri, juiz e executor, e tudo vira um crime de mesmo valor. Sejamos razoáveis: tem diferença entre um assassinato e usar o mesmo vestido que outra celebridade, embora as vezes as reações do público sejam igualmente brutas.
Nesse ambiente, também não fica claro quem é que decide a punição e o perdão. J.K Rowling foi humilhada online por comentários considerados transfóbicos, e existe um movimento enorme para excluí-la de produções do mundo que ela mesma criou. Ao mesmo tempo, Michael Jackson, que todos sabem ter sido um pedófilo, segue sendo considerado o rei do pop. Armie Hammer foi excluído de Hollywood, sua carreira completamente destruída por mensagens privadas de péssimo gosto, embora nenhum crime tenha sido comprovado. Porém, Mel Gibson, um antissemita admitido, foi perdoado e premiado. Will Smith, mais recentemente, agrediu Chris Rock na frente de milhares de pessoas, e imediatamente foi premiado com um Oscar. Os exemplos são inúmeros: alguns caem, alguns ficam. Crimes de verdade são exonerados, e atitudes duvidosas são igualadas a roubo armado; tudo pelas mãos do novo sistema jurídico; a internet. O peso das ações parece insignificante.
A cultura do cancelamento também é velada por uma hipocrisia geral. Todos sabemos que Tom Cruise, John Travolta e Elizabeth Banks são alguns dos principais membros da Cientologia, mas seus filmes seguem rendendo milhões. Quando é revelado os horrores que esses membros fazem, como Danny Masterson, fingimos choque, sem a mínima intenção de mudar nossos atos. A verdade é que admitir os horrores da Cientologia, e apoiar um boicote (talvez inútil) contra seus membros, significaria abrir mão de filmes incríveis. Eu, pelo menos, não estou disposta a me desfazer de Vincent Vega e Danny Zuko.
A questão é ainda mais complicada quando pensamos em artistas, escritores e criadores mais antigos, que obviamente viviam sob um padrão de ética diferente, em um mundo onde o politicamente correto não era um tema conhecido. O movimento para reescrever Roald Dahl e Hemingway, derrubar estátuas e proibir canções de folclore popular merece uma redação própria, mas se encaixa nessa mesma fonte: a arte não é o artista. Admirar o trabalho de alguém não significa idolatrar essa pessoa, assistir a um filme bem feito não significa exonerar as ações de seu criador, amar um personagem fictício não significa concordar com todas as ações de seu escritor, cantar uma música não significa concordar - nem discordar - com todos os momentos da vida de seu produtor.
Estamos tentando julgar arte usando um padrão que sequer existe. Ou entendemos que há uma diferença gigantesca entre a arte e o artista, e que nossa idolatria pelos mesmos é problemática, ou apagamos tudo que já foi feito e começamos do zero. Eu sigo fiel à ideia de que é sim possível aceitar as incoerências de artistas e apreciar seu trabalho, embora às vezes seja desafiador repensar nossos conceitos, entendendo que estamos falando de um produto, e não da pessoa por trás dele.
Se não tentarmos ao máximo separar os dois, vamos perder peças de arte valiosas e formar um buraco negro sem fim, que ao mínimo servirá como censura de entretenimento. Não pretendo deixar de ouvir Michael Jackson, assistir aos filmes de Roman Polanski, ou rir do Jerry Seinfeld. E, com certeza, não deixarei de assistir episódios de That 70’s Show, e me divertir com Hyde e Kelso sem sentir culpa. Acredito que ganho muito mais com isso do que com a íra absurda que parece reger hoje em dia com a cultura de cancelamento que cresce cada vez mais.