Quase que admiramos um velhinho que consegue passar a sua tarde sentado a olhar o nada, a admirar o belo, contemplar as serras e contar os carros que passam na aldeia. Apreciam o vento, contam quantos pássaros sobrevoam o telhado, alimentam os pombos no jardim e caminham devagar. Contemplam os minutos invés de segundos. No seu revés, nós abdicamos do analógico pelo digital, contra mim falo, e agora demora-se menos tempo a pensar. Alteramos formas comportamentais pelo bem da rapidez e do pensamento mais veloz.
Surgem novas gerações e novas profissões, focadas em ocupações e em passo de contrarrelógio, quebrando o ritmo de um pensamento fértil e consequentemente, o não aproveitamento do belo que a vida traz. A criatividade torna-se uma condição, direcionada a uma elite de pensamento que nem todos conseguem aceder. Estamos em alturas que a imaginação deixa de ser automática. Não aprendemos, decoramos. Não queremos saber, queremos passar. Talvez porque o ensino em tantos anos pouco mudou.
E somos lançados num mundo onde pensar e pensar bem, é um privilégio. Ter ideias, boas e más, é um objetivo. Desejar é uma vocação. Criar é de elite.
Somos assim, lançados aos lobos, por tanto amor ao que nos ergue. Realizamos uma personalidade devota de artes onde a artista é a peça-peão, célebre e com fim no lucro. Veneramos obras que os assistentes de “alguém” criam. Devoramos certos livros onde o escritor é apenas o nome. Dançamos ao som de uma música que o artista está sim, mas apenas na voz. E quem realmente cria é meramente uma personagem de Halloween. Um fantasma. Consequentemente mais uma vez “normal”. Portanto, contemplamos mecenas, mas não respeitamos quem a luz criou.
Como tal, somos criaturas culturais, sem saber ler em entrelinhas e, abdicamos de princípios por necessidade. Subjugam-nos mais uma vez mais ao poder de alguém, ao poder de quem tem, em prol de quem pode criar.
Legal é, mas ético será?
Já se transformou em profissão, 14.700.000 resultados no motor de busca do Google, mais do que ontem, confirmei; e certamente, menos do que amanhã. Estes são simplesmente os resultados de Ghost writer, é apenas um dos exemplos.
Infelizmente, um que tantos procuram. E é normal. Porque assim permitimos ser. Porque assim permitimos que seja.
Assinam-se contratos, pequenas palavras são subtilmente ultrapassadas, e a esferográfica faz o resto. A barreira ética é novamente ultrapassada. Há quem tenha ideias e não saiba escrever, e há quem seja artista e não tenha capacidades para exercer. Como tudo na vida, não podemos ter tudo, mas podemos ser fiéis a nós. Nem é certo termos uma audiência feroz por algo que não nos pertence, nem é correto abdicarmos do que nos pertence por trocos com vários zeros.
Como tal, os limites da ética são de novo questionáveis, pois tudo se justifica por necessidade. E, quem efetivamente tem as ideias não as pode pôr em prática. Permanece apenas na sombra. Acabam por se converter em grandes obras, quando o verdadeiro artista está a bater palmas do público, mas suspira contente, por poder pagar a renda.
No entanto, as audiências, os fãs, os admiradores, vivem amarrados na caverna de Platão, iludidos e fechados. Sem conhecer o que está lá fora. Sem saber a verdade, pior ainda, sem sequer saber que precisam de pensar sobre o assunto.
Contudo, é fora da caverna que somos convidados a conhecer mais, a não exercermos casulos sobre nós próprios.
Talvez o velhinho que passa a tarde a apreciar a paisagem... talvez o velhinho que goste do seu banco de jardim e do xadrez com companheiros de reforma... talvez o velhinho que adore ganhar nos torneios de sueca do grupo recreativo da aldeia, durma em paz na sua almofada. Pois, independentemente de confrontos com prazos, com a pressão do anterior sucesso; independentemente do pânico, stress e ansiedade que permite muitos recorrerem a este meio tão pouco correto, temos de pensar se queremos ser lembrados por algo que nem sequer nos pertence. O velhinho não quer.