Em 1777, o engenheiro inglês, James Watt, aperfeiçoa o projeto de máquina a vapor. Uma das primeiras aplicações da máquina de Watt foi na indústria de tecidos, onde o aumento exponencial da produção contribuiu significativamente para sua popularização. As fábricas espalharam-se rapidamente. As mudanças na sociedade, promovidas por esta expansão, foram tão marcantes que este período histórico passou a ser chamado de Revolução Industrial. Mas, podemos ainda dizer que, neste evento, teve origem também a Revolução Tecnológica, tendo em vista que, a partir deste momento, ciência e técnica se fundem em um novo bloco do conhecimento humano, denominado de tecnologia. A tecnologia, portanto, consiste no conjunto de métodos e processos que fazem uso do método científico para a solução de problemas práticos.
Já no século XX, em especial no pós-guerra, o mundo observou uma expansão tecnológica sem precedentes, que alguns chamam de Terceira Revolução Industrial, marcada pelo advento da informática e a ascensão na área da eletrônica e das telecomunicações. Se já no século XIX podia ser observada uma união entre ciência e tecnologia, em especial nas áreas experimentais, a partir da segunda metade do século passado formou-se uma verdadeira simbiose entre ambas, a ponto de alguns estudiosos passarem a chamar esta forma amalgamada de ciência e tecnologia de tecnociência. De fato, hoje em dia é praticamente impossível pensarmos em progresso científico sem uso intenso da tecnologia. Na física, por exemplo, mas especificamente falando na Relatividade Geral, não é mais possível obter-se resultados sem o uso do computador. As equações atingiram tal grau de complexidade que não podem mais ser resolvidas “na mão”, exigindo o emprego de métodos numéricos. Por outro lado, descobertas científicas servem para catapultar progressos tecnológicos. Por exemplo, a próxima revolução na área da informática virá, certamente, com o desenvolvimento da computação quântica.
Quando tomamos tempo para refletir sobre avanços tecnológicos, vem-nos a mente, de forma quase instantânea, a inteligência artificial. Com a popularização do ChatGpt no último ano, as discussões sobre o uso e impactos da inteligência artificial transcenderam aos muros da academia e das grandes corporações tecnológicas, chegando às salas de aula, às redes sociais, e até mesmo, às mesas de bar. Muitas são as dicussões sobre os impactos sociais deste avanço, no que diz respeito ao ensino e aprendizado, relações de trabalho, produção e distribuição de riquezas na era pós-industrial. Assim como, no passado distante, as máquinas passaram a realizar partes das atividades braçais antes desempenhadas por seres humanos, a tecnologia permitiu que parte das nossas atividades intelectuais, fosse realizada por computadores, tendo como resultado a maior disponibilidade de tempo livre, permitindo que possamos nos empenhar em trabalhos que exijam a predominância da criatividade, o ócio criativo de que nos fala Domenico de Masi. Por outo lado, vemos um efeito negativo, com a possibilidade de se delegar às máquinas a elaboração de trabalhos acadêmicos, por exemplo, tornando o aprendizado ainda mais superficial.
Da mesma forma que, com o avanço da informática e a popularização do computador, esta passou a ser ferramenta indispensável na pesquisa científica, era de se eseprar que fossem testadas formas de utilização da inteligência artificial no intuito de se obter diferentes resultados, prodiuzindo novos conhecimentos. Embora a inteligência artificial ainda seja algo recente, qual o impacto que já é possível observar com a expansão da inteligência artificial na produção científica?
Em meu artigo de estreia nesta mesma revista, mostrei como a ciência de dados, uma união de matemática e estatística com a ciência da computação, já havia provocado, e ainda provoca, uma revolução, na prática esportiva, contribuindo para a formação de táticas de jogos, orientando a contratação de atletas e prevenindo o aparecimento de lesões. O que pretendemos, agora, é analisar como a ciência de dados pode se tornar um novo paradigma de como se fazer ciência.
Desde a década de 90 que a técnica de machine learning, uma das áreas da inteligência artificial, tem sido utilizada em áreas como astronomia, astrofísica, farmácia e genética. Com o Big Data, que surge no início dos anos 2000 com a popularização da internet, e o progresso computacional das últimas décadas, tornou-se possível a ampliação da sua utilização na pesquisa científica em diversas áreas, inclusive das ciências sociais. Como um filósofo das ciências, obviamente que este fenômeno não se deixou escapar aos meus olhos, levando-me a investigar a fundo como a inteligência artificial tem sido usada na pesquisa científica.
Em minhas investigações, travei contato com o trabalho desenvolvido de forma autônoma pelo jovem estudante Jonathan da Silva de Morais, sob a orientação do professor doutor Rodrigo Gonçalves, ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. A proposta de seu trabalho é realizar simulações de ondas gravitacionais, a fim de se obter medidas de redshift1 que permitem a limitação de parâmetros cosmológicos como a constante de Hubble, que fornece uma estimativa da velocidade de expansão do universo.
Segunda a Teoria da Relatividade Geral de Einstein, ondulações na curvatura do espaço-tempo propagam-se como ondas, viajando na velocidade da luz, a partir das fontes. As fontes de ondas gravitacionais são entes astrofísicos, em especial, estrelas de nêutrons e buracos negros, que correspondem aos estágios críticos da evolução estelar.2 Quando uma estrela com massa que corresponde a uma ou duas vezes a massa solar esgota completamente seu combustível, ela colapsa, dando origem a uma estrela de nêutrons. Se a massa da estrela for maior do que três vezes a massa do Sol, ao colapsar, dará origem a um buraco negro. No trabalho foi considerada a união entre dois entes astrofísicos, ou seja, entre duas estrelas de nêutrons ou entre uma estrela de nêutrons e um buraco negro como as fontes de ondas gravitacionais.
Numa primeira etapa do trabalho, foi determinada a curva de distâncias de luminosidade como função do redshift. A probabilidade das ondas gravitacionais estão distribuídas como função destes valores de redshift. Estes astrofísicos estão distribuídos ao longo desta curva de distâncias de luminosidade. Como nos explica o Jonathan:
No trabalho, inicialmente, o intervalo de massa que caracteriza cada ente foi previamente definido. Agora, o que pretendemos é, não mais definir intervalos de massa, mas colocar curvas de probabilidades, não somente para a massa do ente, mas também, para determinar a probabilidade do ente para um determinado redshift. Esta situação, somente fazendo uso de machine learning é possível realizarmos uma classificação para os entes. Para isso, fazemos uso da técnica de KNN.
O KNN, ou k-nearest neighbors, é uma técnica de classificação por aprendizado não-supervisionado, em que se procura classificar cada amostra de um conjunto de dados, avaliando sua distância em relação aos seus vizinhos mais próximos. Se os vizinhos mais próximos forem majoritariamente de uma classe, a amostra será classificada nesta categoria. Ou seja, no trabalho em questão, uma amostra é produzida, o algorítimo compara cada elemento com seus vizinhos e define se é um par de estrelas de nêutrons ou um par de estrela de nêutrons com um buraco negro.
O trabalho realizado por Jonathan e seu orientador, o professor Rodrigo, mostra uma tendência, que deve se acentuar nos próximos anos, de inserção da inteligência artificial na pesquisa em física, e em outras ciências. Espera-se, com isso, que novos resultados serão encontrados, em especial na análise da grande quantidade de dados que têm sido produzido por meio de equipamentos observacionais cada vez mais sofisticados.
Ainda é cedo para afirmarmos que veremos uma revolução científica pelo uso da inteligência artificial. No entanto, temos fortes razões para crer que caminhamos neste sentido, em que tarefas mecânicas, ainda que de cunho intelectual, serão delegadas às máquinas, cabendo aos cientistas concentrarem-se na parte criativa do trabalho.
Notas
1 Redshift, ou desvia para o vermelho. A presença de massa tende a provocar uma curvatura do espaço-tempo em seu entorno. Ao passar por tais deformações, a luz sofre um desvio, aumentando o seu comprimento de onda para a faixa do vermelho no espectro, em analogia com o efeito Doppler.
2 Ou são formados no início da história do universo, talvez como resultado da colisão de galáxias.