Recentemente, enquanto fazia uma leitura em busca de material para um futuro artigo, me deparei com a palavra escatologia. Desde esse dia, a palavra não sai da minha mente.

Escatologia, basicamente, consiste em um conjunto de doutrinas sobre o destino do mundo, da humanidade, sobre o fim da história ou do julgamento final. A escatologia está presente nas diversas vertentes das religiões judaica e cristã, podendo variar sobre questões como o paraíso, que pode ser terrestre ou celestial, ou sobre como será o fim. Algumas vertentes falam de um fim provocado diretamente pela ação divina e outras de um fim provocado pela ação de humanos. Independentemente dos detalhes, a escatologia nos fala do clímax que será atingido pela humanidade.

Talvez você esteja pensando, diante do exposto acima, que a obsessão pelo tema seja resultado dos últimos eventos mundiais, como a guerra entre a Rússia e Ucrânia, que assola a Europa já há dois anos, ou do conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas. Mas não. Na verdade, a minha atração por doutrinas que falam sobre os fins dos tempos originou-se de uma conversa que tive com um amigo de longa data, Leandro Silva.

Leandro, atualmente, é CTO e cofundador da Kognita Lab, empresa especializada no uso de ciência de dados para solução de problemas de negócios. Entre muitos assuntos triviais, a nossa conversa concentrou-se sobre a carreira do cientista de dados, que ainda é uma das carreiras da moda, e, em determinado momento, sobre os recentes avanços da inteligência artificial. Segundo Leandro, os atuais modelos de LLM (Large Language Models) alcançaram um nível elevadíssimo de sofisticação e continuam evoluindo em ritmo acelerado. Já é possível, usando tais modelos, produzir textos, inclusive científicos, gerar imagens de alta qualidade e, até mesmo, produzir músicas.

O LLM é um modelo de aprendizado de máquina treinado para aprender a partir de enormes bases de dados. Como resultado, a tecnologia consegue gerar uma linguagem para conversar com humanos e desenvolver contexto, permitindo às pessoas obterem respostas rápidas em plataformas de IA generativa. Por exemplo, a partir de sua descrição, a IA é capaz de produzir um desenho com elevado grau de detalhamento e precisão.

Atualmente, algoritmos de aprendizado de máquina são utilizados por cientistas de dados e outros profissionais para analisar uma grande base de dados, elaborando modelos de agrupamento e classificação, bem como modelos de regressão. Graças a esses algoritmos, é possível extrair informações ocultas em uma base de dados, produzindo conhecimento fundamental para auxiliar a tomada de decisão em negócios. Por este motivo, a área de dados de uma empresa tornou-se importantíssima do ponto de vista estratégico, contribuindo fortemente para o progresso de inúmeras empresas. Um exemplo notório é o da Netflix, criada em 2010, época em que ainda vigoravam empresas locadoras de filmes, como a Blockbuster.

Por meio do uso da inteligência artificial, com a sugestão de filmes de acordo com o perfil do cliente, possibilitou um rápido crescimento, no momento em que a Internet tornou-se mais difundida e com maior velocidade, possibilitando ao serviço de streaming fornecer o seu produto com alta qualidade. No entanto, o que vemos agora vai muito além. A inteligência artificial está se desenvolvendo em um ritmo tão acelerado que, em breve, irá substituir os seres humanos em diversas tarefas.

É bem verdade, e alguém pode fazer uso deste argumento, que avanços tecnológicos, como os que levaram a humanidade a passar pela Revolução Industrial, sempre provocaram a substituição de seres humanos em tarefas que lhe eram tradicionais. Porém, há um fato novo na Revolução que está em curso.

Como escreveu o sociólogo italiano Domenico de Masi, no seu livro Ócio Criativo, a Revolução Industrial provocou o deslocamento do trabalho, predominantemente no campo, para a cidade, para as fábricas. Desde então, inúmeras atividades antes desempenhadas por seres humanos passaram a ser realizadas por máquinas. No entanto, novas atividades, de cunho intelectual, passaram a crescer para atender às novas demandas sociais.

Por exemplo, com a melhoria da qualidade de vida e a formação de uma classe média, passou a haver uma maior procura por educação, o que levou ao aumento do número de professores em todos os níveis. Similarmente, os avanços tecnológicos fizeram crescer a demanda por engenheiros e técnicos, para a produção e manutenção das máquinas. Ou seja, houve um aumento na demanda por atividades de cunho intelectual. Este efeito acelerou-se após a segunda metade do século XX, com o advento da informática e da internet. Domenico de Masi acreditava que o teletrabalho, hoje mais conhecido como home office, seria a forma predominante no século XXI, permitindo um maior tempo livre para o trabalhador, que poderia dedicar mais tempo ao aprendizado e à prática criativa. No entanto, a Revolução provocada pela IA vai à contramão do previsto por de Masi.

Pela primeira vez na história, trabalhos criativos e, de forma geral, trabalhos de cunho intelectual estão ameaçados de extinção nos próximos anos. Como disse ainda o Leandro, em breve, o cientista de dados será uma inteligência artificial que irá receber o problema, coletar os dados, analisá-los e emitir relatórios com as sugestões de negócios. O médico será uma IA que, por meio da descrição dos sintomas por meio do paciente, emitirá um diagnóstico ou sugestão de exames. Até mesmo exames de imagens poderão ser avaliados por máquinas que emitirão laudos com grande precisão.

Aqui vale uma observação. Não devemos crer que, já nos próximos anos, a Inteligência Artificial tornará os profissionais acima citados, ou mesmo de outras áreas, como obsoletos. O que podemos ter certeza é que haverá um impacto severo, como redução dos tamanhos das equipes em áreas como marketing ou ciências de dados. Na medicina, consultas rotineiras poderão ser realizadas a distância, com receitas e prescrições de exames realizadas por IA. Ou seja, é mais provável que profissionais não sejam, em um primeiro momento, substituídos por uma IA, mas sim que sejam substituídos por outros profissionais que saibam como fazer bom uso da inteligência artificial.

Alguns talvez pensem, como era o meu caso, que este estágio ainda está muito à frente no tempo. No entanto, como disse Leandro, isso já será visto em cerca de dez anos. Se essa previsão se concretizar, as consequências podem ser catastróficas. Não haverá tempo suficiente para a adaptação por parte da mão-de-obra, com consequências imprevisíveis no âmbito econômico e social. Empresas de pequeno e médio porte, que não possuem capital para aderir às novas exigências tecnológicas, podem ser extintas em um curto espaço de tempo. Nações menos desenvolvidas vão ficar cada vez mais dependentes das grandes potências. As pressões sociais e econômicas podem levar a rebeliões e guerras de grande porte. E os resultados destes conflitos são ainda mais imprevisíveis.

Por outro lado, há a possibilidade de que a instabilidade em um primeiro momento seja compensada por uma maior produção de riquezas por meio dos trabalhos da IA, o uso mais consciente dos recursos da Terra, uma maior proteção por parte do Estado para os mais afetados pela crise, levando a um novo equilíbrio, talvez mais estável, atingindo um clímax da humanidade, em um cenário semelhante ao vivido pelos humanos no espaço na animação Wall-E. Seria uma espécie de clímax, de fim da história, onde humanos, não tendo mais a necessidade de trabalhar para ganhar o sustento, dedicar-se-ão a atividades mais voltadas para a diversão.

Todavia, enquanto este cenário escatológico não chega, tudo o que podemos fazer é especular quanto ao futuro e nos prepararmos para o presente, que já apresenta inúmeros desafios. Embora não seja sensato desenvolver um medo mórbido dos avanços tecnológicos, seria muito sensato reconhecer sua inevitabilidade e, dentro do possível, tentar se preparar para o novo mundo que bate à nossa porta.