Podemos confiar nas pessoas com quem temos um vínculo. Em geral, pessoas da nossa família que nos acompanham há tempos, com quem temos histórias em comum. Ou nas pessoas que nos mostram caminhos, como os professores. Terapeutas, que nos fazem enxergar nós mesmas de uma outra perspectiva. Amigos, essas pessoas que o acaso nos brinda através dos encontros. Com as pessoas que confiamos, nos sentimos seguras para estarmos vulneráveis. Mas, além desses laços pessoais de confiança que podemos ter, reconhecer e manter, há a confiança na vida.
Confiar na vida é um ato de fé, sendo você devota a uma religião ou não. Uma mulher grávida, por exemplo, em quem ela confia enquanto espera e gera, se não é na vida além da vida que se vive, a vida que nos envolve, nos protege e nos guia?
No tratamento de uma doença grave, no acompanhamento do sofrimento de uma pessoa ou de um animal ou quando você lança um projeto no mundo. Dizemos que confiamos na sorte, sem saber descrever o que é a sorte. Apenas sentimos quando se trata de um momento de concentração e silêncio, para deixar a sorte agir. Não interessa tanto no que você confia, mas interessa que você confia.
O yoga ensina que a purificação da mente acontece através do empenho, do estudo e da entrega. A entrega é sobre confiar. Observe que a entrega é a última etapa de uma purificação que tem no empenho e no estudo as etapas precedentes. Deixar a vida me levar, como o verso da música, não é o que o Yoga propõe porque, antes de deixar a vida levar, nos dedicamos a estarmos presentes e atentos. Ou seja, nós assumimos o comando e levamos a vida.
Até que o momento peça a entrega, quando não há mais nada a ser feito, quando já fizemos tudo o que podíamos fazer. Então você deixa que a vida leve você, mas não completamente. Com o toque suave no leme e os olhos ao horizonte, você deixa o barco ser levado pelo vento sem perder o prumo nem o rumo.
O risco é achar que é tudo para o seu benefício. Todos temos uma mente autocentrada e precisamos que a nossa mente seja assim quando crianças, principalmente. Daí achar que você é especial, que as coisas boas acontecem porque você merece, é um pensamento comum, em certo sentido natural, e perigoso.
Quanto mais confiamos na vida, entendemos que glória, dinheiro e reconhecimento não são sobre nós, apenas. Nós sabemos o trabalho que foi feito, o quanto nos dedicamos. E, ao mesmo tempo, tantas pessoas se dedicam na mesma medida ou mais ainda, que não seria justo falar de mérito unicamente.
Pouco sabemos sobre a justiça maior, que não se trata da justiça que nós, humanos, criamos através das leis. Por isso, confiamos em algo que não podemos conhecer. Mas sabemos que todos os momentos passam, os bons e os maus, e que ao final, dá tudo certo, não porque não sofremos no caminho, mas porque, ao caminhar, as paisagens mudam e o nosso olhar também. Então, saber viver é saber viver no tempo.
Uma ação feita por você pode beneficiar outras pessoas e você sente a satisfação em ser uma agente de transformação, como no cuidado com os filhos, com os animais, com plantas ou até com pessoas que você não conhece. Então, conclui-se que não era para você que a sua ação foi feita e descobrimos, com a entrega, o benefício de não vivermos única e exclusivamente para nós mesmas.
A capacidade de confiar nas pessoas tem uma relação com a confiança na vida. A nossa dificuldade em confiar vem do fato de que vivemos no meio social que muitas vezes nos oprime. Se você mora numa grande cidade, você testemunha a violência muitas vezes por dia. É difícil baixar a guarda.
Então, achamos que nos protegemos ao nos fecharmos. E, fechadas com os nossos pensamentos, julgamos a nós mesmas e aos outros. Fomos educadas para julgar e comparar, o que nos oferece parâmetros para as nossas ações. No entanto, a observação pura e simples também pode ser produtiva, para saborearmos a vida afinal.
De acordo com a filosofia hindu, as nossas atitudes violentas são o reflexo da inabilidade em lidar com o sofrimento. Ao invés de educar a mente para reconhecer o sofrimento e apenas observar, insistimos em reagir, frequentemente com violência, ao culpar outras pessoas ou nós mesmas. E a violência nos faz nos sentir mais culpadas, ou seja, sofrer mais.
Patanjali, o autor de Yoga mais referenciado ultimamente, tem um sutra elucidativo sobre a harmonia de uma visão de mundo:
A tranquilização da mente advém da demonstração de amizade, quando o assunto é conforto; de compaixão, quando o assunto é sofrimento; de alegria, quando o assunto é virtude; e de indiferença, quando o assunto é maldade.1
Ou seja, sentimos amizade quando as relações nos confortam, sentimos compaixão quando assistimos os sofrimentos dos outros, alegria quando uma pessoa manifesta algo bom e belo e indiferença à maldade. A indiferença à maldade não é falta de afeto, mas um distanciamento seguro de reações e ímpetos que podem alimentar uma engrenagem de violência, culpa e ressentimento.
Ao confiar e entregar as suas ações, você sente que não está sozinha. Que a terra gira em rotação e você também. No giro, podemos confiar no dia que nasce, que as próximas palavras podem ser mais bem escolhidas e colocadas (e quem sabe mais bem recebidas), que os gestos podem ser sentidos com mais verdade, que podemos nos reconciliar com pessoas, que se nos perdemos, podemos nos reencontrar.
Confiar na vida e nas relações é confiar que podemos agir como se os outros não fossem nos ferir. Pode parecer inocente ser aberta e confiante, após assistir tantos acontecimentos violentos. Mas, pense que as pessoas podem ferir você, você estando aberta ou não. Para confiar na vida e nas pessoas é necessário saber que aquela suposta ferida pode ser cicatrizada, como já aconteceu com tantos machucados desde a sua infância. Somos feitas de muitos remendos e dores. Talvez, o que você tenha de mais autêntico seja, justamente, a sua resposta às dores.
Confiança é acreditar no poder de cicatrização do tempo e da carne. Quando entregamos o corpo ao mundo e confiamos na existência – ao mesmo tempo, maior do que nós e criada por nós. Confiamos na vida que nos recobre como um manto, como o céu estrelado no qual podemos sentir tantos olhos e luzes a acompanhar os nossos passos vacilantes (a nossa mais sincera dança).
Notas
1 Tradução do sutra 33 do primeiro capítulo Yoga Sutra por Carlos Eduardo Gonzales Barbosa.