Não podia ser diferente: também fui contagiada pela febre rosa. O que parecia ser uma onda que passaria distante, se aproximou e a tudo pintou. Inevitáveis recordações brotavam descontroladas: quantas roupas costurei, com técnicas infantis, para a minha estereotipada Barbie. Caixas de papelão viravam camas, sofás e sei mais o quê, quando, sem conhecer o conceito de reciclagem, reaproveitava tudo o que podia para construir a casa dos sonhos. Aliás, a Barbilândia era uma realidade quando junto às amigas transformávamos o quintal onde vivia em um bairro completo: havia escola, hospital, lojas e escritórios. A década de 80 era um tempo diferente. As meninas que podiam, afortunadas financeiramente e socialmente, tinham apenas uma boneca para chamar de sua e muitas ideias para multiplicar a alegria do brincar, puro e inocente, que sem dar-nos conta ia nos construindo como garotas, futuras mulheres.
O ato de brincar já foi exaustivamente comentado como um momento promotor do desenvolvimento das crianças, pois, como pontuado por Vigostky1, dentre outros teóricos, a brincadeira possibilita a imitação do comportamento adulto durante o jogo imaginário, sendo uma das fontes que possibilita a aquisição de novas habilidades. Nós podíamos ser tudo o que queríamos nessas brincadeiras muitas vezes inspiradas nas vidas reais de nossas mães e das demais mulheres que nos rodeavam, que de um modo ou de outro já haviam iniciado a quebra de limites, a busca pelo que queriam ser. E, de uma ou outra forma, o slogan dessa boneca na época “tudo que você quer ser” auxiliava a direcionar nossas futuras escolhas: profissionais bem-sucedidas (perdão pela generalização, mas minha limitada visão assim enxergava as garotas com as quais convivia).
Por muitos momentos, não tive certeza de que esse “tudo que você quer ser” nos ampliava ou limitava possibilidades. De uma ou outra forma, parecia que o entorno em que nos encontrávamos direcionava nossos caminhos, nossas escolhas. Estudar já não era suficiente, era necessário estudar muito, graduar-se, pós-graduar-se para, quem sabe assim, colocar-se no mesmo nível dos homens. A liberdade de ser quem uma nasceu para ser era direcionada à possibilidade de escolha de carreira, tendo no trabalho a chave para esse caminho de independência que tanto sonhávamos em nossas brincadeiras de bonecas, onde redigíamos os scripts sem editores, nem diretores, com total liberdade criativa. Nossos roteiros podiam ser alterados sem grandes complicações, seguindo o que nos parecia adequado ao momento, a quem creiamos eramos em dado instante.
Talvez fossem nesses momentos de brincadeiras os momentos mais sinceros consigo mesmas. Os momentos em que estávamos vivenciando o presente, permitindo-nos atuar conforme nos enxergávamos naqueles instantes, expondo, por meio do jogo, nossas mais profundas percepções sobre quem erámos. Mas quem erámos? Erámos o que de fato nossas almas ansiavam ser? Erámos o que nossas famílias culturalmente iam estimulando, mesmo sem muitas vezes terem consciência dessa estimulação? Dentre tantas outras perguntas às quais não tenho resposta, somente sei que íamos construindo nossas visões de si mesmas, por meio das interpretações cognitivas que realizávamos instante após outro considerando as informações que recebíamos de nossas famílias, professores, vizinhos, de nosso entorno comunitário, que além das pessoas com as quais convivíamos podia ser expandido pelas informações que recebíamos via televisão, cinemas e livros, dentre outras formas de propagação cultural.
E quanto mais vasto nosso conhecimento, mais complexo pode ser decidir. Como unir a menina educada para ser salva pelo príncipe, tal qual a Princesa Aurora, a Branca de Neve ou a Cinderela, com a garota que podia ser tudo, como a Barbie? Em busca dessa união muitas de nós nos colocamos em uma jornada pela perfeição. O êxito não era simplesmente aquilo que queríamos em nosso mais profundo ser, mas sim uma complexa combinação que tentava unir nossos anseios com os sonhos alheios de nossas mães e avós construídos por meios de nossas interpretações culturalmente enviesadas.
E, em algum momento dessa jornada, o pé perfeito ficou plano. O quebra-cabeça que formava nossa visão de si se fragmentou: todas as peças ainda estavam lá, mas os encaixes não se selavam perfeitamente como antes. Nosso equilíbrio pendeu para baixo, para onde vertem as lágrimas expostas ou muitas vezes ocultadas. Lembro aqui da personagem humana do filme Barbie, que ocultando suas inquietudes e sobrecargas na vida real, transmite suas dores e feridas à boneca querida, provocando uma crise na terra da perfeição. A personagem inicia uma viagem, junto à sua filha, a fim de ajudar a boneca a reencontrar a tal perfeição. Não posso imaginar como você leitora ou leitor interpretou tal jornada. Para mim, ao deixar de lado todo o convencional conquistado, essa personagem entra em uma imersão a fim de encontrar a sua mais sincera visão de si. Quiçá uma versão de si que reconheça as múltiplas versões que somos a depender de onde, de quando e de com quem estamos; uma versão que saiba reconhecer em si seus limites e potenciais mais fiéis às suas próprias crenças e aos anseios de seu coração. Uma versão que reconheça a mudança como desenvolvimento pessoal, uma possibilidade do que está porvir, do que se pode ser, quando se rompem os laços que nos amarram às certezas construídas com bases em verdades que, para nós, podem não ser as mais fiéis ao nosso ser deste tempo e espaço.
Até porque, tenho a impressão de que os sonhos e valores culturais de hoje também já não são os de outrora. Não foi à toa que o slogan atual da boneca mudou: seja tudo que você quiser. Essa é a mensagem que quero para mim e para as meninas, garotas e demais mulheres. Seja tudo que você quiser ser: seja feliz, mas reconheça e aprenda com a tristeza quando esta estiver por perto. Perceba cada nuance de seu ser, seus sentimentos, suas capacidades, seus gostos e desgostos. Estude; trabalhe; descanse; fique só; fique rodeada de pessoas e de si mesmo; se baste, peça auxílio, seja mãe, não o seja, entretanto, seja quem você quiser ser. Escolha consciente dos porquês. Nem sempre poderemos fazer exatamente o que queremos, mas sempre haverá a possibilidade de reagirmos ao acaso do modo como quisermos. Respeite-se, respeite os outros e suas outras escolhas. Estas que podem ser diferentes das suas, provavelmente são as corretas para as outras pessoas.
Viver a vida sem o peso da perfeição pode ser muito mais leve e feliz para nós e para as pessoas com as quais convivemos. Talvez seja isso que a febre rosa tenha nos ensinado. Pergunto-me: quanto tempo essa febre permanecerá? Quais seus efeitos colaterais? Não sei como responder a estas questões. Neste momento, somente sei ser grata à magia do cinema, esta que te transporta para tempos e locais distintos, que te permite por duas horas desconectar-se do real, do virtual e conectar-se com suas capacidades interpretativas, contribuindo para que nos conheçamos melhor.