Embora ainda não exista um total entendimento do povo de Deus acerca do que foi o pacto das catacumbas, pode-se determinar sua importância na vida e ação da Igreja, principalmente nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II.
Três semanas antes do encerramento do Concílio Vaticano II, no dia 16 de novembro de 1965, um grupo de 42 padres conciliares1, vindos de diversas partes do mundo, que eram chamados de “grupo da pobreza”, segundo Dom Helder Camara em uma de suas cartas2, se reuniram nas Catacumbas de Santa Domitila, na periferia de Roma. Este encontro aconteceu de maneira discreta. O grupo dos padres conciliares celebrou a Eucaristia sobre o túmulo dos mártires Nereu e Aquileu e assinou um compromisso de vida3. Este compromisso, que também mudaria a maneira de trabalho e missão da Igreja, foi chamado de Pacto das Catacumbas.
Tal documento é composto por treze compromissos. Após a assinatura dos padres conciliares presentes nas catacumbas, o documento foi ainda assumido por mais de 500 bispos. Trouxe, ainda, inspirações para os documentos das conferências episcopais de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Como grandes expoentes dessa nova maneira de ser Igreja, podemos destacar Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Óscar Romero, entre tantos outros.
Eis o que consta no documento do Pacto das Catacumbas:
Nós, bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho, incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós queria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos irmãos no Episcopado; contando, sobretudo, com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça.
A declaração inicial deste documento é um verdadeiro ensinamento de humildade, pois não trata de grandes gestos, grandes ações, mas, ao contrário, do firme propósito de realizar algo simples. Também não se trata de uma declaração feita por pessoas que se compreendem como grandes da sociedade, mas traz o humilde reconhecimento de que não é uma declaração presunçosa de um grupo que se acha capaz de assumir tal responsabilidade sem vacilos4.
Este pacto, portanto, como destacaremos no decorrer deste texto, trouxe um novo vigor à pastoral da Igreja, inserindo-a em um contexto de saída, indo às periferias, abrindo-se à realidade dos marginalizados, refazendo o caminho percorrido por Jesus Cristo, conforme o texto de Marcos no capítulo dezesseis, versículo quinze:
Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda criatura.
Igreja pobre aos pobres: uma nova pastoral
Para entender a mudança de mentalidade da ação pastoral da Igreja, é preciso realizar um trabalho de pesquisa, partindo do contexto pré-conciliar até os dias de hoje.
Embora nos treze compromissos assumidos pelos bispos não se utilize a palavra “pobre”, a grande novidade para a pastoral da Igreja é ser dos pobres e para os pobres, o que só seria detalhado de maneira escrita no documento de Puebla, quando se fala de opção preferencial pelos pobres5, embora o documento de Medellín já deixe a entender a opção da Igreja pelos mais empobrecidos.
Não há dúvida de que o Pacto das Catacumbas foi uma voz profética neste movimento em prol de uma visão mais integral e holística da missão de evangelização da Igreja. Pode não ter utilizado a palavra ‘missão’ como tal, mas a sua intuição foi equivalente à de desenvolvimentos posteriores dentre todos os organismos cristãos6.
O pacto das catacumbas foi, sem dúvida, um dos grandes divisores de águas para o pensar em uma Igreja pobre totalmente dedicada aos pobres. Porém, é preciso levar em consideração o pré-concilio, isto é, o momento histórico que a Igreja vivia e o que o Concílio Vaticano II desencadeou na história da Igreja.
Sem dúvida, o período histórico que antecede o “grande Concílio”, como é chamado pelos historiadores, é marcado por uma sociedade cheia de novas mudanças, seja marcada por eventos, como as duas grandes Guerras Mundiais, o Concílio Vaticano I, a Revolução Industrial, seja por mudanças na mentalidade das pessoas, como o avanço do capitalismo7. Portanto, poder-se-ia afirmar que o anúncio do Concílio Vaticano II foi inesperado, sobretudo se comparado com os antecedentes históricos8. Embora, ainda hoje, se acredite que o Concílio Vaticano II foi uma continuação do Concílio Vaticano I, interrompido devido à ameaça de ocupação Roma feita pelo exército do então Reino da Itália, que buscava sua unificação, no dia 20 de outubro de 19709, é impossível não levar em consideração de que o Concílio Vaticano II foi o grande pentecoste da Igreja na modernidade.
O cristão está do lado dos pobres, não tanto quando dá esmola, mas quando se dá com todo o seu ser. Mais eficaz será a pobreza do sacerdote, se o desapego de toda a cobiça desordenada e o voluntário e generoso empenho numa vida simples, o ajudar a viver num espírito de recíproca fraternidade [...]. Haverá assim o testemunho conjuntos, duplamente persuasivo, da pobreza e da autêntica fraternidade10.
Na constituição dogmática Lumen Gentium, os padres conciliares deixam claro que a intenção da Igreja é, antes de qualquer coisa, fazer-se presente na vida de todas as pessoas, com a finalidade do anúncio do Evangelho a todos os povos11. Por isso, é preciso que todos os cristãos estejam em sintonia com a Igreja de Cristo, isto é, não se trata de um fazer para, mas um fazer com11, ou seja, a Igreja à serviço da missão da Igreja.
Após o Concílio Vaticano II, a Igreja da América Latina tomou diversas iniciativas pastorais voltadas aos mais pobres, principalmente pelo fato de muitos bispos latino-americanos terem assinado o Pacto das Catacumbas. É certo que, posteriormente, os documentos de Medellín e de Puebla confirmarão tal decisão tomada pelos bispos nas catacumbas de Santa Domitila12 .
No documento da Conferência Episcopal de Medellín, em 1968, não se encontra, especificamente, o termo opção pelos pobres, porém, quando reflete sobre a pobreza da Igreja, os bispos presentes na Conferência Episcopal assumem um compromisso de tornar a Igreja, e consequentemente os bispos, sacerdotes e seminaristas, uma Igreja pobre:
Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres; exigência da caridade. Esta solidariedade implica em tornar nossos seus problemas e suas lutas e em saber falar por eles. Isto há de se concretizar na denúncia da injustiça e da opressão, na luta contra a intolerável situação suportada frequentemente pelo pobre13 .
A Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (CELAM), ocorrida em Puebla, em 1979, foi o grande marco da Igreja à serviço dos pobres, visto que no documento de conclusão é dedicado um capítulo para a opção preferencial pelos pobres:
A opção preferencial pelos pobres tem como objetivo o anúncio de Cristo Salvador, que os iluminará sobre a sua dignidade, os ajudará em seus esforços de libertação de todas as suas carências e o levará à comunhão com o Pai e os irmãos, mediante a vivência da pobreza evangélica[...]. Para viver e anunciar a exigência da pobreza cristã, a Igreja deve rever suas estruturas e a vida de seus membros, sobretudo dos agentes de pastoral, com vistas a uma conversão efetiva14.
Portanto, desde o Concílio Vaticano II, passando pelo Pacto das Catacumbas, pelas Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, fica claro que tornar-se uma Igreja pobre e servidora passa, também, por um longo processo, que precisa ser contínuo. Caso contrário, não teríamos uma Igreja fiel à sua missão entre os pobres.
Os bispos que foram signatários com o Pacto reconheceram, de maneira rápida, a necessidade da Igreja em se abrir aos mais pobres e fazer uma “opção preferencial” por eles. É necessário, então, passados mais de cinquenta anos da formulação do Pacto das Catacumbas, que todos os cristãos vejam que a Igreja ainda precisa se abrir em direção aos mais pobres e fazer aquilo que lhe é de competência, despojando-se dos privilégios e empenhando-se em se identificar com os mais necessitados da nossa sociedade15 .
Concluo com uma oração, breve e completa, a qual conclui o texto do Pacto das Catacumbas:
Ajude-nos, Deus, a sermos fiéis.
Notas
1 Um grupo de autores afirma a presença de 43 padres conciliares. Esta divergência se deve ao fato de haver um neo-epíscopo, dom Luiz Fernandes, que fora sagrado bispo a um pouco mais de uma semana e estava acompanhando o Arcebispo de Vitória, dom João Batista da Mota e Albuquerque.
2 Camara, Dom Helder. In: Marques, Luiz Carlos; Faria, Roberto de Araújo (org.). Dom Helder Camara: cartas conciliares. Vol I, Tomo III. Recife: CEPE, 2009, pp. 299-300.
3 Beozzo, Oscar. Pacto das Catacumbas. São Paulo: Paulinas, 2015, p. 9.
4 Bernardi, José. A opção pelos pobres no Documento de Aparecida. In: Cadernos da ESTEF, n. 39, v.2. Porto Alegre, 2007, pp. 42-50.
5 Bernardi, José. Op. Cit., 2007, p. 45.
6 Bevans, Stephen. Igreja dos Pobres. In: Pikasa, Xavier; Da Silva, José Antunes. O Pacto das Catacumbas: a missão dos pobres na Igreja. São Paulo: Paulinas, 2015, p. 155.
7 Souza, Ney de. Do Concílio Vaticano I ao Concílio Vaticano II: o caminho intermediário. In: Gonçalves, Paulo Sérgio Lopes; Bombonatto, Vera Ivanise (org.). Concílio Vaticano II: análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 17-18.
8 Souza, Ney de. In: Op. Cit., p. 18.
9 Albergo, Guiseppe (org.). História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 2015.
10 Bettazi, Luigi. Igreja dos Pobres. In: Op. Cit., 2015, p. 34.
11 Conforme constituição dogmática Lumen Gentium, 1.
12 Conforme constituição dogmática Lumen Gentium, 31.
13 Bernardi, José. Op. Cit., 2007, p. 45.
14 Conferência geral do episcopado latino-americano (CELAM). Documento de Medellín: texto conclusivo da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. In: Documentos do CELAM. São Paulo: Paulus, 2005, n.14.10.
15 Bevans, Stephen. Igreja dos Pobres. In: Op. Cit. São Paulo: Paulinas, 2015, p. 160.