O ensino da sexualidade nas escolas públicas é controverso porque é atravessado pelos interesses públicos e particulares. Para algumas famílias, há o receio de que a educação sexual possa representar uma contaminação de “outros” valores na aprendizagem dos seus filhos. Ou seja, há uma disputa pelos limites entre o que seria assunto a ser tratado na escola pública, que representa o Estado, e o que é assunto doméstico, a ser tratado no interior das famílias. Essa disputa não é novidade, o higienismo foi um movimento que implementou ações intervencionistas na área da saúde no século passado, sendo a campanha da vacinação, da forma como foi feita, uma das ações que gerou desconforto nas famílias.
Em julho deste ano, o Ministério da Saúde anunciou que a educação sexual e reprodutiva voltou a fazer parte do Programa Saúde na Escola. O Programa Saúde na Escola (PSE), instituído em 2007 pelos Ministérios da Saúde e da Educação, é uma iniciativa para ampliar o acesso dos estudantes de escola pública aos serviços de saúde. No entanto, a sua execução depende da adesão dos sistemas de ensino e, na prática, o programa não se apresenta como um modo de intervenção pedagógica permanente nas escolas.
O currículo escolar, por sua vez, organiza o trabalho docente nas escolas, entre outras dimensões do currículo escolar. Há pelo menos seis décadas, os documentos oficiais que compõe o currículo escolar autorizam o ensino da reprodução humana, como parte do estudo do corpo humano nas aulas de ciências (na década de 1970, o assunto era tratado dentro da disciplina Programa de Saúde).
O ensino de reprodução humana não é educação sexual, propriamente. O ensino da reprodução humana delimita o foco da aprendizagem à função reprodutiva e a sexualidade é mais ampla porque envolve orientações sexuais diversas. Diferente da reprodução, que é comum aos demais seres vivos, a sexualidade é uma dimensão humana, com ampla possibilidade de relações com a experiência cotidiana desde desejar alguém a sentir prazer na sua própria pele.
De fato, é difícil delimitar a sexualidade e, a depender da interpretação da pessoa, a sexualidade pode ser confundida com a própria vida no sentido de que a nossa expressão de vitalidade se dá pela presença no próprio corpo, pela atração entre os corpos e pelas relações. Sexualidade pode não ser sobre comportamento sexual, mas sobre a inteligência de se autorregular ao se sentir segura para viver as emoções e os sentimentos que se manifestam nas relações. Com isso, assumo que a educação sexual, no sentido mais amplo, é conhecimento de difícil “encaixe” no currículo escolar porque aprender a sexualidade é algo que acontece com o amadurecimento da pessoa em que a escola pode participar, mas pouco pode determinar sobre a sua integralidade.
No entanto, o conhecimento de casos de abusos vivenciados dentro de casa evidenciam a exposição ao risco das crianças e dos adolescentes e a necessidade de um projeto de educação sexual voltado à prevenção deste tipo de violência. Esse projeto, dentro do programa do Programa Saúde na Escola, é de extrema importância, mas não prescinde do trabalho cotidiano dos professores e das professoras de Ciências que convivem com os seus alunos, o que facilita a comunicação e o acolhimento das informações. No programa PSE, a intervenção é realizada por profissionais da saúde que não conhecem os estudantes, o que pode ser uma dificuldade para a recepção das orientações. Ao somar as duas iniciativas nas escolas, é assumido que, quanto mais informações a respeito do corpo e dos limites a serem preservados, melhor.
Dentro do escopo da reprodução humana no ensino de ciências, a orientação didática é compreender a reprodução da espécie humana na relação com outras espécies através da escala evolutiva: desde bactérias, plantas e outros animais, até a culminância nos organismos humanos. A narrativa evolutiva é interessante e cativa a atenção dos alunos, mas é polêmica, porque atrita com algumas crenças religiosas sobre a origem da vida humana. É necessário assumir o posicionamento científico na relação com outras interpretações. Afinal, a professora de ciências é a porta-voz das ciências na escola e fala em seu nome. Em solo americano, há cientistas criacionistas, mas eu não localizo este posicionamento em território brasileiro. Portanto, dentro da disciplina de ciências, a evolução das espécies é um princípio pilar dos conteúdos tratados.
Apresentar a biodiversidade ao longo da evolução através de exemplos práticos mantem o distanciamento providencial e seguro na apresentação da reprodução humana pelo enfoque das emoções. Afinal, todos os seres vivos se reproduzem, os registros do desejo e do prazer ainda são escassos em outras espécies.
É intrigante pensar que seres unicelulares foram primordiais para a organização posterior dos seres pluricelulares. É poético tratar as flores como órgãos reprodutivos das angiospermas. Dessa forma, com a perspectiva nas células e não nos corpos, a relação sexual humana pode ser resumida ao encontro entre os gametas, o espermatozoide e o óvulo.
Então, mesmo que algumas famílias encontrem desconforto no ensino da reprodução humana aos seus filhos e filhas, trata-se de uma permissão manifesta nos documentos oficiais curriculares. As Bases Nacionais de Currículo Comum (BNCC), prescrevem aos estudantes do oitavo ano do ensino fundamental, as cinco habilidades associadas ao objeto de conhecimento Mecanismos reprodutivos e Sexualidade: 1. Comparar diferentes processos reprodutivos em plantas e animais em relação aos mecanismos adaptativos e evolutivos; 2. Analisar e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando a atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso; 3. Comparar o modo de ação e a eficácia dos diversos métodos contraceptivos e justificar a necessidade de compartilhar a responsabilidade na escolha e na utilização do método mais adequado à prevenção da gravidez precoce e indesejada e de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST); 4. Identificar os principais sintomas, modos de transmissão e tratamento de algumas DST (com ênfase na AIDS), e discutir estratégias e métodos de prevenção; 5. Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética).
Faço uma ressalva à nova nomenclatura para Infecções Sexualmente Transmissíveis, mas o que está prescrito no documento já é feito desde a década de 1990: a apresentação das mudanças do corpo na puberdade e a ênfase na prevenção de gravidez precoce e de infecções, nesta ordem. Na habilidade 5, quando se menciona “as múltiplas dimensões da sexualidade”, se reconhece a necessidade de uma seleção, como se o assunto fosse demasiado amplo para caber dentro do programa de uma disciplina. O que, de certa forma, vai ao encontro do Parâmetro Curriculares Nacionais, publicado em 1997, que recomendava a abordagem transdisciplinar do tema.
Venho acrescentar ao ensino da reprodução humana, além do aspecto de prevenção de gravidez e de infecções, a importância que os alunos conheçam a interpretação anatômica dos seus corpos. Ao longo da minha experiência como professora de ciências, observo o impacto das figuras anatômicas no ensino de reprodução humana. A atenção dos estudantes se relaciona de forma instantânea e magnética às imagens que eles e elas, muitas vezes, nunca viram. As imagens informam detalhes internos do seu próprio corpo, uma perspectiva desconhecida para a maioria. Além disso, as imagens informam do corpo de outra pessoa, um corpo que o aluno não tem acesso.
O fato é que o adolescente compartilha conteúdo a respeito do sexo através de conversas com outros adolescentes e de consumo de pornografia, inclusive. Então, o ensino dos aparelhos reprodutores, informativo e científico, acrescenta uma outra camada de interpretação. Ao se distanciar das emoções ou dos estereótipos, o adolescente é convidado a lidar com os fatos do corpo que amadurece e que, na relação sexual, deve assumir responsabilidade frente aos riscos de gravidez e de infecções.
Além disso, o ensino de ciências explica os processos por quais o corpo passa através de um esquema pautado na ação dos hormônios, na anatomia e nos acontecimentos fisiológicos que acontecem dentro dos nossos corpos e não fora deles. Trata-se de um viés importante porque complementa a interação informal com o sexo.
Antes da experiência do sexo, o adolescente ingressa no campo imaginário do sexo. Não é a escola que antecipa esse ingresso, o assunto já circula nas esferas da vida do adolescente. Cabe à escola, no ensino da reprodução humana, esclarecer pontos cruciais de segurança e zelo pela própria saúde e pela saúde da parceira ou do parceiro.
A partir dessas informações, a comunicação entre professores e alunos se desenvolve em percursos imprevisíveis aos documentos prescritivos e aos próprios planejamentos dos professores. Como uma aula é um espaço aberto e dialógico, as experiências e as dúvidas que serão compartilhadas pelos alunos serão conhecidas no momento da aula. Cabe a cada professor coordenar a comunicação para que ninguém se sinta ofendido/a e chamar a atenção para que a nomeação científica seja prezada na aula de Ciências. De várias formas, o ensino de ciências é o ensino da linguagem das ciências, diferente da linguagem cotidiana, principalmente com relação a este assunto.
Dessa forma, ao resumir a relação entre ensino da reprodução humana e a educação sexual, eu afirmo que, mesmo que a educação sexual não esteja prescrita no currículo de Ciências neste termo exato, o ensino da reprodução humana é uma das intervenções possíveis de educação sexual. Em suma, a reprodução sexual tem a sua parte neste amplo aprendizado sobre sexualidade. E, cabe ao professor e à professora, a depender de cada caso e de cada turma, direcionar aprofundamentos possíveis e encaminhar atendimentos especializados.