O Santo

O século XIII foi um período histórico de profundas transformações, percebendo-se sua influência ainda hoje na sociedade. Nele, surgiram as primeiras universidades, deu-se a escrita da Magna Carta, grandes catedrais góticas foram construídas, aconteceu por completa a recepção da obra de Aristóteles no Ocidente. Por sua vez, em relação a Igreja, além das Cruzadas, do IV Concílio de Latrão em 1215 e o Concílio de Lião em 1274, o presente século fez conhecer um personagem, que daí em diante marca profundamente o Cristianismo: Francisco de Assis2. Dante Alighieri, na Divina Comédia, afirma que nasceu no mundo um sol, fazendo alusão ao nascimento de Francisco, em 11813:

Houve um homem na cidade de Assis, que fica nos confins do vale de Espoleto, chamado Francisco. Desde os primeiros anos foi criado por seus pais arrogantemente no orgulho mundano. Imitou-lhes por muito tempo o triste procedimento e tornou-se ainda mais frívolo e arrogante4.

O espírito deste tempo, influenciou Francisco, o jovem que aspirava nobres ideais. Ele participou dos ideais comunais de Assis, com objetivo de libertar-se das mãos dos Senhores Feudais, prática, em parte, herdada de seu pai, o qual era comerciante de tecidos. Teve vida social, ia a festas, era de boa convivência. Almejando ser nobre e ter reconhecimento público, quis tornar-se cavaleiro. Contudo, seus planos mudaram. Na primeira guerra que vai, é preso pelos inimigos durante um ano, e fica doente. Na segunda, foi até uma parte do caminho, porém escutou uma voz, a qual lhe pediu para voltar a Assis, local onde lhe seria dito o que teria de fazer 5.

Com 20 anos sonha em ser cavaleiro. Nesta época, a cavalaria era o que havia de mais nobre e mais elevado. Ocorre a guerra entre a cidade de Assis e Perusa. Assis é derrotada e Francisco é feito prisioneiro. Fica um ano preso e após volta para sua casa. Tempo depois prepara-se para ir a outra guerra, na Apúlia. No caminho encontra um cavaleiro cuja vestimenta era miserável. Despoja-se de sua roupa e oferece ao cavaleiro. Se dá conta que com seu luxo, eclipsava um verdadeiro cavaleiro e acaba voltando para casa:

Dado que o pai Bernardone lhe reprovava a demasiada generosidade para com os pobres, Francisco, diante do Bispo de Assis, com um gesto simbólico despojou-se das suas roupas, com a intenção de renunciar assim à herança paterna: como no momento da criação, Francisco nada possui, mas só a vida que Deus lhe doou, em cujas mãos ele se entrega6

Daí em diante a vida de Francisco mudou radicalmente. Passou a andar pelas florestas arrabaldes de Assis. Ficou muitos momentos sozinho, alguns em igrejas abandonadas. Por vezes não dormia em casa. Dava dinheiro da loja de seu pai aos pobres. Destaca-se, nesse momento, a escuta do Evangelho durante as Missas.

Assim, aos poucos, surgiu o despertar vocacional de Francisco, até que numa Missa, ao ouvir o Evangelho do envio dos Apóstolos, exclamou: É isso que eu quero, isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer do íntimo do coração7, sentindo-se chamado a viver, de maneira inteira, na pobreza e dedicar-se à pregação8.

Em 1209, após ter conseguido arrebanhar outros onze irmãos, Francisco formula, de maneira simples, um esboço de sua regra, tendo como base o Santo Evangelho, deixando claro a intenção de seguir, de maneira completa, as palavras e ensinamentos de Jesus Cristo, acrescentando algumas coisas que achava ser necessário para o bom andamento da vida religiosa que ele estava iniciando9.

Ainda no mesmo ano, com a intenção de que seus escritos fossem confirmados pela Santa Sé, Francisco vai à Roma com seus confrades, a fim de se encontrar com o Papa Inocêncio III que, por sua vez, intuiu a origem divina do grande movimento criado por Francisco10.

O Pobrezinho de Assis tinha compreendido que cada carisma doado pelo Espírito Santo deve ser colocado ao serviço do Corpo de Cristo, que é a Igreja; portanto, agiu sempre em plena comunhão com a autoridade eclesiástica11.

Com o consentimento do Papa Inocêncio III, Francisco logo arrebanhou outros frades, a ponto de o número de irmãos religiosos aumentar imediatamente, se espalhando pela Itália e por outros países em exercício de sua missão, despertando sempre mais e novas vocações para a nova maneira de viver a vida religiosa 12:

Eles voltaram alegremente para Rivotorto. De lá, eles voltaram para a Igreja da Porciúncola, generosamente dada pelos camaldulenses do Monte Subasio. Francisco impôs a si e aos seus o nome de Frades (ou irmãos) Menores, querendo que com essa denominação se assemelhassem àqueles que na cidade de Assis eram chamados de Menores13.

A vida dos doze passou a ser o anúncio da Boa-Nova de Jesus Cristo no mundo. Mas não só. Do mesmo modo, viver semelhante ao seu exemplo de vida, como novos Apóstolos. Em vista da quantidade de novos irmãos, a Forma Vitae tornara-se insuficiente para a vida cotidiana. Os Capítulos anuais, momento em que os irmãos partilhavam os acontecimentos da vida, e tomavam novas decisões, gradualmente deram origem à Regra não Bulada (RnB)14.

É necessário, também, destacar um grande fato, acontecido em 1212. Uma jovem de Assis simpatizou muito com Francisco, suas pregações e sua história de vida. Chamava-se Clara Ofreducci15 . Pertencia a uma família nobre. Em uma pregação de Francisco, sentiu-se chamada a viver o Evangelho. Após a pregação, foi conversar com Francisco para tentar entender o que o Senhor esperava dela. Descobriu que o que à seduzia era a pobreza vivida no seguimento de Jesus Cristo, como um caminho para a verdadeira fraternidade, caminho de simplicidade, paz e alegria; algo totalmente diferente da realidade burguesa que vivia. Clara, então, foge de casa para seguir os passos de Francisco16:

No dia 18 de março de 1212 [...], as tesouras de Francisco cortaram os bonitos cabelos da cabeça da jovem fugitivo. Um véu negro lhe foi imposto, e então a bela moça pronunciou os votos de pobreza, castidade e obediência a Francisco, seu superior. Na mesma noite, Irmã Clara foi conduzida por Francisco a um mosteiro, que não ficava longe, das freiras beneditinas17.

Assim, o movimento franciscano cresce e Francisco entrega o governo da Ordem a Frei Pedro Cattani em 1220:

Tendo regressado à Itália, Francisco entregou o governo da Ordem ao seu vigário, Frei Pedro Cattani, enquanto o Papa confiou à proteção do Cardeal Ugolino, futuro Sumo Pontífice Gregório IX, a Ordem, que contava cada vez mais adeptos. Por seu lado o Fundador, totalmente dedicado à pregação que desempenhava com grande sucesso, redigiu uma Regra, depois aprovada pelo Papa18

Em 1224, no período de 15 de agosto a 29 de setembro, Francisco, com Frei Leão e Frei Rufino, passa no Alverne, preparando-se com uma quaresma de oração e jejum para a festa de São Miguel Arcanjo. Em setembro, tem a visão do Serafim alado e recebe os estigmas19 .

Seu estado de saúde piora muito a partir deste ano. Era final de agosto, em 1226, pede para ser levado à Porciúncula. Chegado à planície, lança sua bênção sobre Assis. Nos últimos dias de vida, dita o Testamento, auto testemunho de incalculável valor para a vida e os propósitos de homem tão singular. No dia 3 de outubro, à tarde, Francisco, morreu cantando mortem suscepit. No domingo seguinte, 4 de outubro, é sepultado na igreja de São Jorge, na cidade de Assis, mas o cortejo fúnebre passou antes pelo mosteiro das Clarissas20 . No dia 16 de julho de 1228, Francisco foi canonizado.

Notas

1 Toda vez que aparecer, nas notas de rodapé, o termo 1Cel, 2Cel, 3Cel, 4Cel ou 5Cel, se refere aos textos sobre São Francisco de Assis que foram escritos por Tomás de Celano. Este frade é considerado o primeiro biógrafo de São Francisco de Assis e, segundo a tradição franciscana, as citações deste livro devem ser feitas desta forma. Por isso, em respeito aos irmãos franciscanos, mantenho a tradição deles. Os textos se encontram em: Celano, Tomás de. Vida de São Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1982.
2 Bihlmeyer, Karl; Tuechle, Hermann. História da Igreja. Vol II, p. 295. São Paulo: Paulinas, 1964.
3 Bento XVI. Os mestres medievais: de Hugo de São Vitor a João Duns Escoto, p. 69. Campinas: Ecclesiae. 2013.
4 1Cel, 1.
5 Bobin, Christian. O menor de todos: Francisco de Assis, pp. 39-41. São Paulo: Paulinas, 1999.
6 Bento XVI, Op. CIt., p. 71. Campinas: Ecclesiae, 2013.
7 1Cel, 22.
8 Bento XVI, Op. CIt., p. 71. Campinas: Ecclesiae, 2013.
9 1Cel, 32.
10 Bento XVI, Op. Cit., p. 71. Campinas: Ecclesiae, 2013.
11 Idem, p. 71.
12 Bihlmeyer, Karl; Tuechle, Hermann. Op. CIt., pp. 299-300. São Paulo: Paulinas, 1964.
13 Villoslada, Ricardo Garcia et. al. Historia de la Iglesia Católica. Tomo II, p. 746. Madrid: Editora Católica, 1953, tradução nossa. 14 Regra redigida, apresentada no Capítulo de 1221, porém não apresentada ao Papa. Falaremos sobre ela mais abaixo.
15 Existem grandes divergências quanto ao nome de Santa Clara. Há autores que dizem ser Clara Scifi, porém, a maioria afirma ser Clara Ofreducci.
16 Villoslada, Ricardo Garcia et. al. Op. Cit., p.750. Madrid: Editora Católica, 1953.
17 Villoslada, Ricardo Garcia et. al. Op. Cit., p. 750. Madrid: Editora Católica, 1953, tradução nossa.
18 Bento XVI, Op. Cit., p.73. Campinas: Ecclesiae, 2013.
19 BentoXVI, Op. Cit., pp.73-74. Campinas: Ecclesiae, 2013.
20 Aguiar, Porfírio de. Vida de São Francisco de Assis. São Paulo, 1925.