Fingir, fazer de conta, ou não perceber as próprias incapacidades cria ilusões, que são automaticamente transformadas em obrigações, em regras a ser cumpridas. Em uma vida que transcorre assim, a necessidade de transpor os limites consensualmente indicados é constante, pois os limites ultrapassados passam a ser os degraus que levam aos objetivos almejados, ao sentimento de vitória por ter conseguido ou alcançado o alvo.
Agir sem condições de agir, apenas copiando modelos existentes é muito difícil. Não se sabe o que fazer, se sabe apenas que tem que conseguir fazer. Os eventos, dos mais corriqueiros aos mais marcantes, perdem seus sentidos estruturantes, se transformando em momentos de aprovação e autoafirmação. O casamento, por exemplo, é a cerimônia, a festa, o bolo, o papel assinado, e não se vê com quem se casa, apenas se vê que apareceu alguém com quem se casar. A mesma atitude vale para profissionalização, para as viagens, a compra da casa etc. sempre situações esvaziadas e formalizadas pela adequação aos padrões valorizados. Viver, então, é se adequar a catálogos de bem ou mal estar.
É oportuno ressaltar esses temas da imitação, da copia de padrões, da incapacidade e da ilusão, pois apesar de sempre existirem, têm sido incentivados a patamares alarmantes. Atualmente a amplitude de alcance das mídias digitais lhes confere um poder inusitado no qual tudo é valorizado ou desvalorizado em função das propostas do digital-influencer, que opina e influencia sobre todo e qualquer campo da vida, enfatizando constantemente seu papel como referencial de socialização e de seu sucesso. Ser capaz é estar inserido em adequações genéricas, é reproduzi-las ou negá-las. E por mais desastres que isso prometa, é essa a única bitola da aparente individualização, agora transformada em processos identitários e resumidos no que seu influencer, coach ou guru sugerem.
Trocar a individualidade - as possibilidades de ser - por formas identitárias é aprisionar, é limitar possibilidades. As confrarias identitárias se comportam como guildas medievais, comprometidas explícita ou implicitamente com comportamentos padrão para servir reis agora representados por corporações, por partidos e ideologias. Fazer parte, ter um lugar e poder de fala, é sempre pedir licença, ter o direito de posicionar- se, ou seja, se negar como possibilidade de questionamento e transformação. Papaguear, falar ou reproduzir gestos, imitar performances e comportamentos, é buscar e manter atitudes enganosas e alienantes. A máxima de que a união faz a força é também uma maneira de criar barreiras, guetos, muros separatistas.
Esconder medos, pânico, ansiedade, inaptidão para inúmeras ações e enfrentamentos, dificuldade de compreensão, inabilidade para lidar com situações surpreendentes, enfim, embaraço frente a diversas situações sociais, disfarçar ocultando tais dificuldades na tentativa de passar uma imagem de adequação, é uma atitude desastrosa que além de exigir muito esforço, aumenta o desespero, a neurose. Sentir- se incapaz e assim buscar, ou ser influenciado a buscar, conformidade com padrões sociais, não resolve as dificuldades, comprometem e alienam, ampliando a problemática.
Todos esses processos fundamentados em divisão, em polarização possibilitam autorreferenciamento negador de possibilidades e de impossibilidades. Aprofundam as problemáticas psicológicas e consequentemente expandem as dificuldades nos relacionamentos sociais, gerando um ciclo vicioso e despersonalizador que só é interrompido quando se autodestrói alcançando situações irreversíveis, ou quando busca saídas psicoterapêuticas.
A falta de condição - seja para compreender, seja para atuar em determinadas situações - requer questionamentos ao que limita, ao que incapacita. Esse é o processo, é o que precisa ser clarificado para surgir mudança, transformação e vivência integradora. É o simples perguntar “- por que tenho que me defender?” que faz guerras acabarem, continuarem ou iniciarem.
Não é adequação que possibilita mudanças, ao contrário, é sempre o questionamento, a antítese, que traz transformação, mudança que possibilita a continuidade do antagonismo e constrói solução.