Ainda de fraldas, nas noites quentes de verão, eu saía descalço para o pátio da nossa casa de Campo de Ourique, em Lisboa, olhar o que se podia ver do céu, emoldurado por escuros prédios de cimento. Mesmo assim havia três ou quatro estrelas, 'pirilampos colados àquela coisa azul escura lá em cima' - como diria o Timon no Rei Leão. E podia dar-me um ataque de melancolia, aquela estranha essência que o Fado canta e que afecta todos os lisboetas, por mais alegres que sejam. Entrava pelos olhos, a distância dali a uma estrela e a um porto seguro, inatingível, que por lá houvesse.
E nos inebriávamos do mosaico da Calçada à Portuguesa, até os olhos se turvarem ao pisar a maré-baixa de lágrimas, areia e aquelas pedrinhas brancas com cheiro a mar antigo. Na vulnerabilidade da tristeza, as gaivotas vinham roubar-nos os corações, que levavam para o cimo do Castelo de São Jorge. E da muralha, à nossa frente, bicavam-nos incomplacentes até as suas brancas penas se tingirem de rosa.
E agora, já em flamingos anões, transportavam-nos aos olhos de África, onde também nos perdemos e tanto chorámos. E os arpejos longínquos de uma Cítara, a Oriente, desafiavam a Guitarra Portuguesa que tocávamos, num beijo longo e húmido perfumado a Jasmim. Do Poente, chegava o aroma quente a café torrado, mistura de Batucada das Novas Américas que nos dava ânimo a subirmos ao castelo. Lá, tantos éramos a afugentar os bandos de gaivotas que se elevavam numa nuvem rosa nos ares, que deixava ver sobre as lajes frias, milhares de corações esventrados, deste e doutros tempos. Descobri o meu e para ele corri. Parando à sua frente, num último esforço, ele saltou-me para o peito, aconchegando-se para sarar a dor.
Nas noites de verão da minha infância, eu vinha de fraldas, olhar o que havia das estrelas de Lisboa. E uma brisa me envolvia num abraço seguro, daqueles que só um Deus ou a mãe poderiam dar. A melancolia esvanecia-se e tudo na noite voltava a ficar bem.
Andávamos sempre juntos atrás dos pais como três patinhos e eu era o Patinho Feio (pelo menos assim o sentia). Em 1968, os pais tiveram de ir ao Algarve com um engenheiro amigo, ver um terreno grande para um empreendimento turístico a construir, julgo eu. Ia ser uma obra grande. Anunciaram que só podiam levar um dos patinhos e que os outros iam ficar com o avô na grande casa dele com jardim. Então, de repente, parecia a votação final do júri da Eurovisão ou 'A Escolha de Sofia', num suspense total. E eu pensei - Ou levam o Rui porque é o mais velho ou a Nusha porque é bebé - Por fim, lá saiu um nome - Rui! O Rui vai connosco por ser o mais crescidinho - o meu coração já sabia e apertou. Falei em voz baixa - 'O mais crescidinho'!
Só porque tem mais 18 meses do que eu! - Na altura eu estava com quatro anos e ele ainda não tinha feito seis! Era a primeira vez que nos íamos separar por motivo de viagem. Eu não me importava de ficar com o avô. Mas saber que ia ser uma viagem de seis dias nas férias do Carnaval e que eu ficava, deixava-me boquiaberto. E foi terrível quando se vieram despedir. Meteram-se no carro e arrancaram. Era como se tivéssemos ficado, a Nusha e eu, num cais de pedra, a ver o barco partir. Uma coisa bem ao estilo do Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, na sua “Ode Marítima”:
(...) Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve com uma recordação duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha (...)
Foi mais ou menos isto que senti e fui esconder-me debaixo da mesa da casa de jantar. E ali fiquei como um pássaro nocturno, um pequeno Noitibô, à espera de algum insecto de passagem que o distraísse e que os dias e as noites voassem até ao regresso do pai, da mãe e do Rui. Imaginava as amendoeiras em flor do Algarve como que cobertas de neve. Anos mais tarde, veria as cerejeiras em flor do Japão, essa beleza tornada realidade durante a Primavera de lá. E na Grécia, durante uma Tournée pelo Norte do País, vi do comboio, intermináveis campos de algodão que tornavam a paisagem branca e fofa numa nuvem rasteira até ao infinito.
E chorei duas lágrimas lentas e profundas debaixo da mesa. O tempo tem essa capacidade de passar depressa ou lentamente, consoante as nossas expectativas e, às vezes, contrariando-as. Quando por fim regressaram, não corri para eles. Fiquei a chorar, atrás de duas longas cortinas de renda de um nicho de janela no hall da casa. Possivelmente, a minha primeira representação dramática naquela mini 'Boca de Cena'; do teatro da vida.
Nesse Carnaval de 1968, mais de metade da família, o pai, a mãe e o Rui, tinha ido para o Algarve. A distância gerava saudades, que era assim como uma espécie de morte mas não total. Podia perder o ânimo, o apetite e a vontade de sorrir, com o que isso acarretaria de sombra dentro do peito.
Assim, passei a manhã do dia da separação, debaixo da mesa da casa de jantar do avô. Tinha por única companhia o relógio de pêndulo de parede, que a princípio me reconfortava até começar a dar as badaladas dos quinze minutos, meias-horas e horas. Parecia o Carrilhão de Mafra! Estranho como nunca antes me tinha dado conta e agora, no silêncio, se tornava um pesadelo. É que antes, estávamos todos juntos. Os nossos corações abafavam aquele tic-tac. Existia um burburinho quando a família estava reunida. Memórias colectivas, destas e doutras vidas, somavam-se a ideias soltas, a acções simples que fazíamos juntos como comer, dormir, escutar música, ver livros, que faziam parte de um património construído em cima de cumplicidades e de amor. O pêndulo começava a marcar os segundos com um tic-tac fortemente desagradável e matemático. Parecia dizer – Este segundo já passou! Este também! O tempo não pára! Está todo contadinho! Perdeste mais este! E este! – e lá vinham as badaladas das horas certas.
Quando chegou às doze badaladas do meio-dia, tive de sair da casa de jantar, de tão atordoado que estava com o som metálico da maldita máquina. Penso que hoje, o efeito mais aproximado seria assistir a um noticiário. Ao fim de meia-hora fica-se zonzo, como meter um tacho fundo pela cabeça abaixo e dar marteladas ritmadas com um tubo de metal. Resolvi então sair para o jardim para me encontrar com a natureza.
Naquele ponto de fragilidade em que me encontrava, percebia que um jardim, por ser criado pelo homem, nunca seria a própria natureza. Deu-me pena ver todas aquelas plantas a sorrir como as concorrentes a Miss Universo, quando não passavam de bibelôs de decoração, mostruário de um parque temático, uma recriação da realidade.
Mas o que é a realidade? Eu estava tão desnorteado que não queria seguir com essa conversa interior. Por isso, foquei-me no agora. Olhava à minha volta e tudo me lembrava o Rui. As corridas de caracóis que fazia sozinho, como jogava ao berlinde sozinho, ao pião, a perícia como andava à caça de moscas e as metia dentro de caixas de fósforos que coleccionava. Decididamente, o Rui era um filho único em potência e que devia ter sofrido horrores por ter mais dois irmãos.
Éramos a concorrência que veio perturbar o seu paraíso. Felizmente, ele não era muito territorial. Ficava lá no seu mundo ser deixar ninguém chegar perto. Partilhar o quarto de dormir comigo durante anos, devia ter sido de uma grande violência para ele. Talvez por isso se tenha embrenhado nos estudos e tornado um dos melhores alunos do Liceu Francês de Lisboa? Eu era exactamente o contrário. Em casa não estudava nada mas na escola absorvia tudo como uma esponja.
Tinha muito boas notas mas sem pegar em livros. Os meus cadernos não se comparavam aos dele, que estiveram em exposição para que todos os alunos pudessem ver e aprender o que era uma boa apresentação. Ele escrevia tudo a azul turquesa com caneta de tinta permanente e usava cores várias para os sublinhados. Consoante a importância dos temas, assim ia marcando as páginas dos cadernos. E agora estava no Algarve, a passar a semana do Carnaval com os pais, a derreter-se todo a comer Dom Rodrigos, feliz da vida por não me ter nem à Nusha por perto, a desviar a atenção deles. Ele devia estar a sorrir para o papá e a mamã, a dar à cauda de contente, e eu ali na consciência do inferno que era estar onde não queria e a sentir-me ultrajado. Subi as escadas para o piso de cima e entrei no quarto dos pais, onde tudo cheirava ainda aos seus perfumes. Sempre era melhor do que nada. E a Nusha estava a dormir no berço. Fui vê-la. Era muito bonita e perfeitinha. Peguei nela ao colo e nem os olhos abriu. Deitei-me na cama dos pais abraçado a ela e disse-lhe baixinho - Pronto, Nushinha, não tenhas medo. Está tudo bem!
Quando acordei tinha um dedo pequenino a pesquisar os orifícios do meu nariz, os meus olhos e a boca. (O meu gato Zizinho faz-me o mesmo, hoje em dia, aqui na casa da ilha grega). E eu sorria porque me fazia cócegas. Ao ver que eu estava a rir, a Nushinha dava gargalhadas de bebé e eu gargalhava mais ainda. E, de repente, estávamos a comunicar! Do nada, comecei a arranjar brincadeiras para a distrair. E naqueles dias, fui ficando ligado a ela por uma amizade intensa e inspiradora, imaginando o que estaria a pensar e a sentir. Do nada inventava historias. A simplicidade e o despojamento abriam portas à maior sofisticação que é a amizade. E que grande confusão se faz hoje entre amizade, interesse, simples e básico.
A descoberta que fiz da minha irmã mais nova, levou-me a ser pai e mãe durante aqueles seis dias e depois para grande parte da caminhada na vida. Percebi que estar com ciúmes do meu irmão era uma atitude egoísta e sem sentido. Felizmente tinha saído debaixo da mesa e ido para o quarto dos pais. Abençoado relógio que me fez sair da zona de conforto. Naqueles seis dias, a Nusha cresceu imenso. De dia para dia, ela aprendia novas coisas e dava respostas pessoais. É tão estranho quando um bebé, de repente, começa a olhar-te para dentro dos olhos e fica muito curioso a sondar.
Quando o avô vinha a entrar no quarto, para ver se estava tudo bem, já eu a tinha posto no berço e ela ficado muito caladinha a olhar para mim. Não a deixava sozinha nem por um minuto. Ia assistir ao banho dela no grande quarto de banho todo branco do avô, que cheirava a sabonete de alfazema. Ao fim da tarde, o avô punha-a no carrinho de bebés, e vínhamos passear os três para o jardim. A Nushinha adorava. Olhava para tudo com a curiosidade da primeira vez e ao fim de um bocado, adormecia sobre o babette. Punha muita rádio para ela ouvir. Quanto mais cedo aprendesse a falar, melhor.
À noite, ia para o meu quarto. O avô dormia com ela e eu adormecia com a lua e o sorriso do trabalho bem feito. Nesses dias não choveu, mas o ar refrescou bastante. Nunca entendi porque o Carnaval era no tempo frio. No Brasil fazia sentido, porque lá era verão. Da janela do quarto, via os foliões a passar na rua, mascarados de felicidade cheios de frio e a atirar serpentinas às janelas. Uma quase me acertou, e uma quantidade de palhaços e bailarinas me acenaram, cúmplices. Respondi com um ligeiro sorriso porque, naquele segundo, eu tinha voado para o Algarve.
A Nushinha começou a falar sozinha no quarto e fui para o pé dela. Sempre era melhor do que estar a inventar lenha para me queimar.