É preciso ir além da superficialidade e fazer uma leitura hermenêutica/simbólica do conceito "espiritualidade” para perceber que a espiritualidade, tal como o sonho, é algo “concreto e definido como outra coisa qualquer…" (António Gedeão: Pedra Filosofal). Vejamos:
Em primeiro lugar é urgente compreender que “Somos um Corpo”. O corpo é o templo da alma e do espírito que o habitam e portanto o bem ou o mal a fazer passam pela acção, pela sua voz, pelas suas mãos…A espiritualidade do Ser Humano exprime-se em actos, actos de fala, gestuais, afectivos, artísticos.
Materializa-se cada vez que o Mundo “pula e avança…”; com a imaginação, com a Nona sinfonia de Beethoven ou com a Última ceia de Da Vinci; com revoluções de consciência, com “batalhas” que se travam dentro do nosso corpo, corpo afectivo, erótico (note-se que o corpo faz-se a beijar…), com todos os nossos Eus, pois Somos Seres plurais, já nos ensinou o grande psicólogo/escritor Fernando Pessoa!
A espiritualidade “come-se”, “bebe-se”, beija, abraça, desperta, e canta regiamente “Sei que vou por onde me guiam os meus próprios passos”; caminha até santuários como Santiago de Compostela e materializa-se no acender dos círios ao Anjo da Guarda… no exemplo que os pais dão aos filhos… nas histórias com os seus heróis e heroínas que nos encantam e inspiram a sermos melhores pessoas…
Nada há no espírito que não tenha passado pelos sentidos e pela motricidade. O espírito tende a se conceber como um aparelho analógico do corpo vivo e de sua organização e a conceber os outros corpos como ‘analogon’ do corpo próprio. A aquisição das diferenças espaço/tempo, continuidade/ruptura, dentro/fora...pontua essa construção
(Anzieu, 2003)
A matéria-prima da espiritualidade somos nós, seres humanos, com os nossos sonhos, sonho de sermos mais e melhores, seres de luz!
Mas será que podemos escolher o Bem ou o Mal? A liberdade é um terreno onde, segundo o filósofo Paul Ricoeur, (1969), aparece claramente a dimensão ética do mal, identificando-se em parte com o que habitualmente se considera como “consciência moral”.
Para Ricoeur, o mal é um problema ético. É-o, em primeiro lugar, porque não pode existir o mal-ser, o mal-substância, ao contrário do que afirmava o maniqueísmo. O que existe é o mal fazer, o mal como obra do homem, que resulta do mau uso da sua liberdade. Liberdade e mal estão intimamente ligados. Mas, se a liberdade qualifica o mal como um “fazer”, o mal é um revelador e uma ocasião soberana para se tomar consciência da liberdade.
No entanto, será bom relembrar que cada projecto ético, o projecto de liberdade de cada um de nós, surge no meio de uma situação que é já a priori eticamente marcada: escolhas, preferências, valorizações, já tiveram o seu lugar e foram-se cristalizando em valores que cada um descobre quando desperta para uma vida consciente. Logo, toda a praxis nova está inserida numa praxis colectiva, marcada por sedimentações de obras anteriores e pela acção dos que nos precederam. Trata-se de uma situação que tem o seu paralelismo com a própria linguagem. Todo o falar e dizer de novo supõe a existência de uma linguagem já codificada; por outras palavras, isto significa que não podemos agir, senão através de estruturas de interacção existentes e com uma história própria; o que quer dizer que, mesmo o relacionamento mais íntimo realça de um pano de fundo cheio de instituições.
Os valores não são, portanto, eternas essências, mas estão, sim, ligados às preferências, às avaliações das pessoas individuais e finalmente à história dos costumes.
Será, pois, a capacidade que possuo para me colocar no lugar do Outro (como referiu Ricoeur na sua obra Soi-même commme un autre), esse desdobramento, essa alteridade na minha identidade, que vai permitir ao ser humano a apropriação dos valores universais em valores em contexto, para que possamos viver uma sabedoria prática com uma consciência mais evoluída!