I

preciso que me dê as mãos
porque não posso sustentar tanto céu
com um só golpe
de vista
nem o azul cobalto que se move como água
com pintados arraias
baques de sucuris
e a curiosidade dos botos

preciso que me dê as mãos
porque é muito céu pra tão pouco corpo
e não é possível tanto plano
sob o azul curvo
olho de peixe
das águas que voam
enquanto um beija-flor está preso
na ilusão de nuvens da minha caixa torácica

II

madrugada

um galo risca o silêncio
(Eugénio de Andrade)

perto da mão direita
se afunda a lua vermelha

da mão esquerda
nasce o rio do dia

os galos desistem
e meus olhos mudam de cor

amanheço
não há dúvida, amanheço

III

as pessoas duvidam
por estas terras, conhecido,
como antes os dinossauros
agora enterrados sob pedras
como os indígenas expulsos
de cemitérios inundados
os peões boiadeiros barrageiros
ribeirinhos sem dinheiro

mas não há sereias na lagoa

IV

com tanta arara no céu
só pode viver aqui Macunaíma
disfarçado nas ruas do centro
perguntando aos homens
de muiraquitãs

-que não existem, herói!

mas há jacarés na lagoa

V

quinto andar

na altura do voo
perto do risco
do aeroplano
perdura apenas
a loucura dos pássaros

VI

morar no voo do pássaro
asas ao alcance da mão

o ar no peito do pássaro
sustenta a navegação

morar na altura do voo
entre duas nuvens e chão

VII

camino

bate no corpo
como se proa
o vento

VIII

o rio vive
como me fez viver
como fez nascer
minha genealogia
(Mailson Furtado)

É tarde
mas o rio é o mesmo
e também o Sol
dobrado sobre as águas

No calendário colado entre fios de energia
os números não se distinguem
No chão o pequeno cachorro
entre tanques e escamas
corre ainda dos mesmos pés
Nas mesas as facas
sempre furam as sacolas de plástico

Longe
nas águas do rio
meninos e meninas riem por horas
as mãos enrugam
os olhos lembram olhos de peixe
e como é tarde ficam morenos

É tarde
mas os meninos e meninas são os mesmos
ainda prendem pés em arames
imaginam o cemitério afogado
e temem as arraias

a temperatura da água é a mesma
e também a impaciência das marolas
a linha do rio a possibilidade dos peixes

O pôr do Sol sempre é inalcançável
e por isso meninos e meninas
não olham para o Sol
mas eu olho
(sou a mesma?)
e entendo o Sol porque ele toca minha boca
porque o círculo de fogo invade o redondo dos olhos
e porque ele morre e se espalha no sacrifício das águas

As árvores são as mesmas
e o chão de terra o cheiro de rio
(eu caminhara entre árvores agora)
A ilha permanece
e ainda não posso nadar largas braçadas
até as águas feitas de luz

É noite
as vozes não são as mesmas
mas uma voz é a mesma

É noite
Se amanhã eu entrar na luz do Sol
saio das águas dourada como o peixe?

Notas

O poemas "preciso que me dê as mãos" e "é tarde" foram publicados no livro É muito céu pra tão pouco corpo (Edições esgotadas, Portugal).