Como em toda fatalidade, ninguém soube exatamente qual teria sido sua causa decisiva, se é que não se deveu à confluência de todas elas (o que equivale a dizer a nenhuma), ou do mero infortúnio. Além disso, no ponto remoto do Pacífico Sul onde, em fins de 1778, se deu a morte violenta do oficial de marinha inglês James Cook, algo ainda mais intrigante que o acaso das circunstâncias a teria precipitado: o malfadado contato, não só entre duas culturas, mas entre dois mundos.

O registro de extensos e controversos inquéritos, atas e recriações reflete as tensas e especulativas discussões que o fatídico evento suscitou. Apesar da perplexidade, a narrativa falava por si, e a conclusão do senso comum era óbvia. Em suma, o capitão James Cook atracara com sua tripulação em uma das então inexploradas ilhas da Polinésia em meados de dezembro daquele ano. Passariam ali o ano novo porque o navio precisara de reparos. Para angariar a madeira e a calafetagem necessárias, Cook prometera o que não podia em troca da mão de obra nativa. Seu perjúrio deu início à revolta indígena em meio à qual lhe trespassou a lança ou a machadada fatal.

A perspectiva histórica que então ensejava o poderio náutico e a lucrativa gana dos marinheiros britânicos é bem estudada até hoje. Enquanto que a que estava por trás do assombro com que os ilhéus viram pela primeira vez a monumental nave europeia é tão pouco conhecida quanto um dos livros de Marshall Sahlins, no qual o antropólogo deu sua versão dos fatos sob a bruxuleante luz de sua hoje malgastada disciplina.

Nas crônicas que pôde recolher, Sahlins buscou dados novos e fez questão de se debruçar sobre uma série de aspectos insuspeitos. Não que sua análise carecesse de pressupostos teóricos, como o de que os signos cosmológicos fornecem uma espécie de modelo para a ação do indivíduo. O fio da meada foi que, por algum motivo que ele não se deteve (possivelmente ligado a fatores econômicos, como a escassez, penso eu), os ânimos estavam à flor da pele no arquipélago quando Cook aportou. Sua chegada catalisou a tensão entre os polinésios, cujos rituais religiosos vinham lhes prognosticando a proximidade da redenção por meio do retorno de sua principal divindade, um tal deus Lono.

Na tradição astrológica local, a aparição do deus, akua, Lono dava-se em ciclos anuais que se renovavam nos solstícios de verão, ou seja, fins de dezembro no hemisfério austral. O comboio marítimo de Cook fundeou ali uma primeira vez para retornar em uma segunda e última ocasião. Assim, sua primeira chegada coincidiu com a data em que os polinésios, ainda que de maneira simbólica até então, esperavam o mágico veículo do deus prometido. Uma série de pequenas coincidências, autênticas ou forjadas pela ânsia, confundiu a vinda de Cook com uma epifania. Ademais, as insígnias que decoravam as velas inglesas assemelhavam-se aos grafismos nativos que reproduziam a disforme imagem de Lono, e o itinerário dos navios ao se acercarem da ilha perfizera um périplo similar ao descrito nos presságios dos feiticeiros havaianos.

O diário de bordo confirma o testemunho dos sobreviventes. Na primeira “visita”, Cook foi celebrado até à adoração pelos nativos como sendo um dos seus deuses, que regressara para cumprir encarnado os rituais que anualmente eram praticados nas festividades religiosas do Makahiki. Ao desembarcar, Cook, conduzido por um sacerdote havaiano, vestiu lisonjeado a idolatrada carapuça. Cumpridos os rituais, abastecidos os porões da flotilha, celebrou-se o derradeiro rito: a morte ritualística do deus anfitrião e a cerimônia de despedida prescritas na liturgia, com sua promessa de retorno para o ano seguinte logo que as plêiades surgissem no céu anunciando novamente a estação votiva ao deus Lono. Ao amanhecer partiram os ingleses, agradecidos e saciados.

Um incidente de bordo ou uma tempestade, no entanto, avariou justo o navio do capitão, que para dar mostras de bravura e liderança declinou trocar de embarcação e retornou sem escoltas para a ilha onde o cultuavam. Esse imprevisto, porém, inverteu a visão dos nativos. Ressurgido três dias depois, Cook não podia ser o akua Lono, senão um impostor. O ciclo de regeneração e sua jura de prosperidade fora profanado pelo logro. À recepção agora hostil, seguiu-se uma série de furtos e depredações contra a agora debilitada fragata. Até que o roubo de um escaler precipitou a fatalidade. Canhões apontados para o populacho, Cook tentou fazer o rei polinésio como refém para reaver sua propriedade. Houve um princípio de revolta e era iminente uma chacina. No tumulto, uma pesada lança havaiana rebentou-lhe o peito ou a jugular.

É difícil conceber o que se seguiu sem outros recursos que os da intuição. Parece que foi como se tudo até então não houvesse passado de uma grandiosa encenação, porque o sangue e o estertor de Cook apaziguaram subitamente os ânimos. Talvez não se tratasse de um impostor, mas de um deus menor que fingira ter partido para o além e que afinal se dignara a cumprir sua função nos cerimoniais de morte e ressurreição. Redimido, seu corpo afantasmado foi reverenciado pelos nativos como se houvesse readquirido sua sacralidade. Resignada e faminta diante do mal auspício e da falta de alternativa melhor com que honrar o fúnebre destino do seu chefe, cerca de quinze dias adiante sua tripulação deixou a ilha levando embalsamados os despojos de James Cook.

Marshall Sahlins certamente conhecia a tese de Malinowski segundo a qual os mitos eram uma espécie de justificativa para o presente, uma maneira de legitimá-lo; ou a de Lévi-Strauss, para quem os mitos seriam uma forma de filosofar, um veículo para o discurso cosmológico. Sahlins propôs-se ir além de premissas. O trágico caso de Cook, assim recontado, serviu-lhe para ilustrar sua teoria de que os indivíduos se utilizam de tramas já estabelecidas na mitologia. Como um roteiro, os mitos possuíam uma estrutura ideológica e serviam de arquétipos para situações análogas. Daí, Sahlins concebeu o infausto episódio como o desenrolar de uma série de prescrições cuja prática resultaria no rearranjo cultural pelo qual a sociedade havaiana passaria em seguida.

O que Sahlins talvez não tenha se dado conta é que sua versão serve para levantar a hipótese de que também os ingleses agiam segundo sua conjuntura cosmológica. Embora mais difícil de definir ou demonstrar, já que a incorporamos enquanto civilização ocidental, havia também uma estrutura cosmológica que condicionava a percepção da realidade pelos europeus. Arrisco alguns sintomas: a obtenção de status após suas façanhas pelo mar; perfilados no convés, sentirem-se motivados ao entoar com emoção God Save the King; o merecimento de um bom lugar no Céu por levarem sua fé aos gentios; garantirem o legado do seu sangue e de sua herdade à futura prole. Enfim. Alheios a essas razões, tudo isso seria tão absurdo, ou ininteligível, para os nativos quanto o foram para os forasteiros o advento do akua.

Ao que me remetem estas linhas é sobre que signos míticos estaríamos então estruturando nossa conduta atualmente. Se Sahlins estiver certo, se pudermos identificá-los é porque não são mitos no sentido que ele propôs, ou já teriam deixado de sê-lo. Seu caráter imanente adere à realidade. Engolfados por este meio, mal notamos a fragilidade das relações entre causa e efeito.

Diante do pouso de um luminoso disco voador, poderíamos nos perguntar o que teria vindo fazer aqui. É certo que por nós mesmos jamais atinaríamos com a intenção dos tripulantes. Talvez eles nos inscrevessem em um de seus relatos, por assim dizer, se ainda fosse necessária a história em outros mundos. E nós também os inscreveríamos em nossos anais. Criando versões obviamente tão distintas de um mesmo fato quanto pudessem ser díspares as cosmologias.

Afinal, como no imaterialismo de George Berkeley, em que um objeto só existe se houver alguém que o perceba, ou em Kant, onde só captamos das coisas as aparências, no fundo os fatos não são nada sem alguém que os interprete, e tampouco este alguém poderá fazê-lo sem uma cosmologia que o ampare.

Notas

Kuper, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002.
Sahlins, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.