Acordei na manhã do domingo de Páscoa com apenas 4 horas de sono, havia passado a noite anterior em meio a vida noturna Fiorentina, em um bar karaokê chamado Red Garter e quase decidi ficar na cama do apartamento alugado em que estava. Mas era domingo de Páscoa, meu primeiro feriado, e tinha prometido a minha mãe e minha avó, duas católicas ferrenhas, participar da tradição da cidade. Sair do prédio foi uma luta, chegar até a catedral foi uma batalha.
O meu percurso que normalmente levava 20 minutos durou 45, o centro da cidade histórica estava coberto de turistas, católicos ou curiosos, no mesmo caminho. Ao meu lado uma família germânica passava apressada, senhores e senhoras de idade falando um Italiano forte ao atravessar a rua, e um casal espanhol tentava chegar a catedral mais rápido. É uma sensação um tanto surreal, diversas nações se empurrando, pisando em seus sapatos, carregando suas crianças cansadas, todas em uma mesma direção.
Os ônibus e trens andam em número menor, o barulho das ambulâncias é menor, os poucos cafés que estão abertos são lotados com turistas. Eu cheguei às 08h50, consegui um lugar apertado perto da longa grade que cercava a imponente catedral Santa Maria del Fiore, o grande Duomo. A igreja já estáva com as portas abertas e os policiais ajudavam a conter a multidão que chegava mais e mais a cada segundo.
Quando digo que a cidade estáva cheia quero dizer que ela estava borbulhando com pessoas de todo o mundo. Todas as janelas dos prédios que cercam o domo estavam abertas, havia pessoas nos telhados, a praça da igreja parecia um formigueiro com aquele amontoado de pessoas. Todos ali para ver a missa, alguns por fé mas a maioria por curiosidade.
Na Itália, cada cidade tem uma tradição diferente para a Páscoa, Florença com uma das mais famosas. As pessoas da igreja distribuem ramos e ovos para a multidão, e logo depois o padre abençoa toda a roda de pessoas com água benta. A guarda de Florença (atores vestidos com roupas e penas coloridíssimas) faz uma apresentação com sua fanfarra e suas lanças. Às 09h00 da manhã, a missa começa. A voz do sacerdote ecoa na praça através de alto-falantes em Latim, acompanhado por um coro de vozes angelical.
Devo admitir que só entendia a parte do amen, mas não por barulhos externos, pois foi a primeira vez que testemunhei uma multidão grande ficar em tão singular silêncio. O sol brilhava sobre nós, algo incomum para a páscoa, e a procissão que acompanha o carro levado por lindos cavalos chegou na outra ponta da praça. Este carro tem quase 500 anos e 9 metros de altura, desenhado perfeitamente para seguir a rota imutável de sair da Porta al Prato até a Piazza do Duomo.
Ele chega acompanhado de carros de bombeiros e mais soldados, e se instala em frente às portas do Duomo. Às 10:00 da manhã o grito do sacerdote dizendo Glória ecoa e os sinos começam, a pomba de ferro ligada ao carro é solta e um show de fogos de artifícios e badalar de sinos começa. A tradição dura cerca de 20 minutos e faz um impacto muito mais profundo do que você considera que faria. É a representação da volta de Jesus, feita de um modo tão incrível que deixa a multidão em silêncio abismado.
Quando os sinos se calam e os fogos se apagam, uma ovação de palmas se segue. É lindo e comovente ao mesmo tempo, o coro nos deixa com uma última música linda . A cidade ganha vida a partir deste momento, pois os cafés, restaurantes e lojas se abrem enquanto as pessoas se afastam lentamente. O trânsito é tão grande que quase não consigo achar um restaurante disponível para meu almoço, e quando o faço é um lugar cravado em um dos prédios antigos com uma enorme vitrine de vidro que me permite observar a humanidade se movendo pelas ruas.
É surreal, definitivamente, pensar que Florença existe há mais tempo que a maioria dos países. Que suas ruas, essa mesma onde fiquei escondida, já viveu e reviveu essa tradição por séculos, e que continuará provavelmente por muito mais tempo. As ruas que já viram tantas perdas, tantos amores e muitas, muitas páscoa para contar. Acredito que não seja preciso ser católico para aproveitar tal beleza, estar em uma tradição antiga carrega um charme incomum. E acima de tudo este ritual renova suas esperanças um pouco: a tradição diz que se a pomba de ferro atingir o carro rapidamente a cidade terá sorte por um ano, e desta vez ela foi muito veloz.